O Peru vive uma instabilidade política permanente. Desde 2017, o país teve seis presidentes.
Pedro Castillo foi o último a cair, dando lugar a Dina Boluarte, a primeira mulher a comandar o país na história.
A Economist Intelligence Unit (EIU), divisão de pesquisa e análise do grupo da revista The Economist, acaba de divulgar seu tradicional índice que avalia a "qualidade da democracia" pelo mundo e rebaixou o país sul-americano de "democracia com falhas" para a classificação "regime híbrido", ou seja, em que aparecem traços de autoritarismo.
O Peru ficou na 75ª posição do ranking (o Brasil também teve queda em seu índice e está em 51° lugar).
A EIU atribuiu a nova classificação para os peruanos à tentativa frustrada de golpe empreendida por Castillo em dezembro passado — que levou à sua saída de poder e posterior prisão. Isso tudo dentro de um ambiente político já bastante instável nas últimas décadas.
Mas em meio à grande turbulência política, a economia do Peru acumula quase 30 anos de uma trajetória de crescimento sustentado, com poucas interrupções, o que levou muitos especialistas a falar até de um "milagre econômico peruano".
Os números são convincentes. De acordo com o Banco Mundial, o Produto Interno Bruto multiplicou seu valor por seis desde 1993.
Em 2001, 20,3% dos peruanos viviam com menos de US$ 2,15 por dia em 2022; esse número foi reduzido para 5,8% da população.
Embora haja descontentamento em amplos setores com a manutenção das desigualdades no país — muitas vozes apontam que os dados do PIB escondem a realidade social peruana —, os números macroeconômicos da história recente são citados como exemplo de sucesso mundo afora.
"Em perspectiva, as últimas três décadas talvez tenham sido as melhores da história peruana. Nenhum país pode mostrar um histórico igual no declínio da pobreza", disse Waldo Mendoza, economista da Pontifícia Universidade Católica do Peru e ex-ministro da Economia, à BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
Como a economia conseguiu progredir em meio à tempestade política permanente no Peru? Existem algumas razões.
1. Independência do Banco Central
Especialistas afirmam que a independência do Banco Central de Reserva do Peru (BCRP) e sua gestão da política monetária têm sido um dos pilares do equilíbrio econômico peruano.
Carolina Trivelli, pesquisadora do Instituto de Estudos Peruanos, disse à BBC Mundo que "a independência que a Constituição de 1993 deu ao BCRP permitiu que ele tivesse uma gestão muito técnica e profissional, totalmente independente do ciclo econômico e político".
O conselho de administração da instituição, composto por sete membros, é eleito pelo governo e pelo Congresso, mas, uma vez nomeados, são totalmente independentes .
Em um raro exemplo de continuidade nas instituições peruanas, o diretor do BCRP, Julio Velarde, está no cargo desde 2006 e já viu passar presidentes de diferentes denominações políticas.
Quando Pedro Castillo o confirmou no cargo, os mercados viram na decisão um sinal de confiança na economia peruana, dadas as dúvidas que surgiram sobre a política econômica que o novo presidente poderia adotar.
Assim, apesar das constantes mudanças de rumo no governo e no Congresso do país, seu banco central tem conseguido seguir uma política coerente com foco no equilíbrio fiscal, na contenção da inflação e na manutenção do valor do sol, a moeda peruana.
O ex-ministro Mendoza destaca que "o banco central tem tido um papel tradicional no combate à inflação e continua a cumpri-lo agora em condições difíceis, já que existem pressões inflacionárias externas e o banco teve que reagir elevando fortemente a taxa de juros".
2. Modelo econômico blindado na Constituição
O modelo econômico aplicado no Peru nos últimos anos foi o consagrado em sua Constituição de 1993.
Aprovada no governo de Alberto Fujimori e criticada por muitos, principalmente pela esquerda (que apontava deficiências democráticas), a Carta Magna lançou as bases para o crescimento que se seguiu à aprovação do texto constitucional e possibilitou a redução dos níveis de pobreza no país.
O artigo 62 da Constituição impede que os contratos firmados sejam modificados por leis posteriores, o que tem significado forte proteção às empresas estrangeiras que investem no país, tendo assim a garantia de que as condições de suas operações não serão alteradas.
Para alguns analistas, isso afastou o temor das habituais expropriações e nacionalizações em outros países latino-americanos, o que permitiu ao país atrair grandes volumes de investimentos.
Mas os críticos apontam que lidar com multinacionais na exportação de matérias-primas, especialmente minerais, não ocorre de forma justa e exigem maior poder de barganha do Estado.
Na campanha que o levou à presidência, Pedro Castillo fez da renegociação com empresas estrangeiras uma de suas bandeiras, mas seu governo não concretizou essas promessas.
Outro ponto fundamental está no Artigo 79, que determina que o Congresso não tem iniciativa de criar ou aumentar gastos públicos, o que tem contribuído para o equilíbrio fiscal dos últimos anos. No entanto, uma recente decisão do Tribunal Constitucional propõe uma nova interpretação para limitar o seu alcance.
3. Flutuação que ajuda a manter a moeda estável
Waldo Mendoza ressaltou que, se observarmos o comportamento do câmbio na América Latina, o do Peru é um dos menos voláteis.
Em outras palavras, a moeda peruana é uma das que menos vê seu valor flutuar em relação à moeda de referência, o dólar americano, e não apresenta tendência a desvalorizações acentuadas em momentos econômicos adversos típicos de outras economias da região.
Apesar de todo o furacão político, o país terminou 2022 ainda com queda na cotação do dólar, e a moeda peruana ficou na quarta posição de um ranking da Bloomberg que classifica as principais divisas latino-americanas.
Uma das razões para evitar desvalorizações acentuadas do sol é a política peruana de "flutuação suja", em que a taxa de câmbio oscila, mas com intervenções eventuais do banco central local (modelo que o Banco Central brasileiro também segue).
O Peru conseguiu acumular mais de US$ 74 bilhões em reservas internacionais, algumas das mais altas da América Latina em relação ao PIB.
Trata-se de uma quantidade bastante razoável de recursos que o Banco Central de Reserva do Peru pode mobilizar em um piscar de olhos para evitar uma depreciação excessiva de sua moeda.
Mendoza afirma que "as reservas são uma espécie de seguro contra um 'câncer' e permitem atuar em circunstâncias complicadas que derrubariam qualquer país".
Esse colchão financeiro também é uma das razões pelas quais o Peru é um dos países com a menor dívida pública da região.
Os desafios ainda a serem superados
O progresso dos últimos anos não resolveu todos os problemas do país e não faltam vozes que apontam que os benefícios do crescimento não têm sido distribuídos de forma justa.
Julieta Ayelen Almada, especialista em História Econômica da Universidade Nacional de Córdoba, na Argentina, disse à BBC Mundo que "o crescimento do PIB por si só não mostra toda a realidade social. No Peru, nos últimos anos, temos visto uma crescente desigualdade no acesso a serviços básicos como saúde ou educação".
Carolina Trivelli, pesquisadora do Instituto de Estudos Peruanos, aponta que "muito tem sido feito para reduzir a pobreza monetária, mas muitas pessoas ainda estão longe de viver nas condições em que deveriam".
O próprio Velarde, diretor do banco central peruano, já declarou: "Temos renda para prestar serviços melhores".
Foi uma crítica aos governantes em diversos níveis em um país em que a falta de capacidade de gestão dos órgãos públicos e os frequentes escândalos de corrupção tornaram-se as principais preocupações.
Mas o crescimento das últimas décadas não serviu para corrigir as deficiências de infraestrutura, abastecimento de recursos essenciais como água ou serviços públicos de saúde, que ficaram especialmente evidentes durante a pandemia do coronavírus.
O prognóstico para o futuro próximo não é muito otimista. O investimento em mineração, tradicional motor do crescimento, parece ter abrandado devido à incerteza e aos constantes conflitos sociais em torno das grandes explorações.
E o contexto internacional, marcado pela inflação e pela guerra na Ucrânia, não convida ao otimismo para uma economia como a do Peru, que, por seu caráter aberto, é altamente permeável ao que ocorre no exterior.
O BCRP espera um crescimento de 3% entre 2022 e 2023, abaixo do necessário para continuar reduzindo a pobreza.
"Para continuar reduzindo a pobreza como fizemos nos últimos anos, precisamos crescer 4% ou 5% de forma sustentada", diz Trivelli.
Crescer mais e garantir que os benefícios cheguem a todos os peruanos será o desafio para manter vivo o "milagre peruano".
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