Lisboa — A Europa enfrenta, hoje, a mais grave crise em pelo menos uma década. Atropelada pela inflação, que, na média, começou 2023 próxima de 9% ao ano, a população dos principais países da região está saindo às ruas, cobrando melhores condições de vida e pressionando os governos a agirem. As limitações para atender os pleitos, no entanto, são muitas. A maior parte das administrações está de mãos atadas, sem capacidade para ampliar gastos, seja para socorrer os mais carentes, seja para reajustar os salários de servidores públicos. A previsão de especialistas é de que as tensões sociais tenderão a crescer, abrindo espaço para o populismo, em especial, o da extrema-direita, que carrega junto o fascismo e a xenofobia.
"O momento é extremamente grave na Europa. Os Estados estão no limite. As despesas cresceram demais nos últimos anos, devido ao envelhecimento da população, e não há margem para aumento de impostos. O que estamos vendo nas ruas é o cidadão cobrando um bem-estar que os países europeus já não podem mais dar", disse Miguel Relvas, ex-ministro de Assuntos Parlamentares de Portugal. No entender dele, há uma conjugação de fatores que empurram a Europa para o quadro de dificuldade em que se encontra. Além da inflação, há uma enorme demanda sobre os sistemas de saúde e de Previdência, não houve os necessários investimentos na modernização da máquina pública e, em consequência da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, os países tiveram de ampliar em muitas vezes os gastos militares.
No Reino Unido, que optou por deixar a União Europeia, a situação é alarmante: pelo menos um terço da população está em vulnerabilidade, devido à disparada do custo de vida, sobretudo, da energia elétrica. Não por acaso, ontem, mais de 500 mil cidadãos foram às ruas cobrar medidas urgentes para minimizar os efeitos da carestia.
Trabalhadores do sistema de transporte urbano — trens e metrô — cruzaram os braços. A paralisação se somou aos movimentos grevistas de professores e de vários servidores. A previsão é de que os enfermeiros engrossem esse caldo numa manifestação marcada para a próxima semana. Pelos cálculos dos sindicalistas, esse é o maior movimento desde 2011, quando mais de 1 milhão de funcionários públicos pararam contra mudanças nos sistemas de aposentadorias.
Segundo a secretária-geral do Sindicato Nacional de Educação do Reino Unido, Mary Bousted, os professores estão dispostos a levar adiante suas cobranças — as projeções indicam que pelo menos 85% das escolas foram atingidas pelas paralisações. A razão para a resistência, disse ela, é clara: "Houve, nos últimos 12 anos, um declínio catastrófico dos nossos salários". A consequência, destacou, é uma fuga em massa de profissionais do setor de educação, colocando em risco a formação de milhares de estudantes. O governo britânico, porém, reluta em atender os pleitos de professores e outros servidores. No máximo, oferece reajuste linear de 5%, o que, na avaliação dos trabalhadores, é muito pouco ante a inflação na casa de 10%.
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Tempo roubado
Na França, o nível de tensão se elevou diante da proposta do governo de Emmanuel Macron de aumentar, de 62 para 64 anos a partir de 2030, a idade para aposentadoria. Na última terça-feira, mais de 1 milhão de pessoas tomaram as ruas das principais cidades do país. Em 19 de janeiro, os manifestantes já haviam evidenciado a insatisfação com o projeto do governo, também por meio de um protesto gigante. As manifestações são coordenadas por um grupo de sindicatos, que prometem ampliar a gritaria. "As mobilizações vão aumentar", assinalou o sindicalista François Hommerel. Também representante de trabalhadores, Philippe Martinez afirmou que a reforma "canaliza toda a insatisfação na França".
A reforma da Previdência é um compromisso de campanha assumido por Macron, sob o argumento de que a França tem uma das menores idades para a aposentadoria, onerando demasiadamente o Estado — na Alemanha, o benefício só é concedido aos 65 anos; na Dinamarca, chega a 67. Aliados do presidente francês admitem, contudo, que não será tarefa fácil levar a proposta adiante devido às enormes manifestações populares.
"O que se vê na França se repete em vários países europeus, onde a longevidade aumentou muito", ressaltou Miguel Relvas. Ele lembrou que nem mesmo o elevado nível de imigração na região, que reduziu o custo do trabalho e garantiu mais recursos para os sistemas previdenciários, está sendo suficiente para mitigar os problemas orçamentários enfrentados pelos governos.
Em Portugal, neste momento, a maior pressão sobre o Estado parte dos professores. Desde 16 de janeiro, eles vêm cruzando os braços diariamente cobrando concursos públicos, reajustes salariais e recomposição de tempo de serviço para promoções, que foi congelado por diversos planos econômicos. Nas contas da Federação Nacional dos Professores (Fenprof), ainda faltam seis anos, seis meses e 23 dias para serem repostos. "Esse tempo nos foi roubado pelo governo, pois foram trabalhados", afirmou o secretário-geral da entidade, Mário Nogueira. Ele garantiu que, no próximo dia 11, a terra de Cabral verá a maior manifestação da história dos docentes. Pelo menos 100 mil deverão sair às ruas de Lisboa.
"A percepção é de que os professores não existem para o governo. Não estamos exigindo nada além do que manda a lei. Nossa carreira prevê 34 anos de serviços para chegar ao topo, é a mais longa da União Europeia. Relatório do Conselho Nacional de Educação do ano passado mostra que, aqueles que lá chegaram, tinham 39 anos de serviço", assinalou Nogueira.
Segundo ele, diante desse contexto, 73% nunca chegarão ao topo da carreira. "Isso tem consequências imediatas, as pessoas ganham menos do que deveriam. As distorções são muitas", destacou. No caso dos concursos, o Ministério da Educação anuncia vagas para preenchimento em áreas distantes até 200 quilômetros das moradias dos professores, sem lhes dar qualquer tipo de assistência. Com isso, muitos desistem de lecionar.
"O resultado é que milhares de estudantes estão ficando sem aulas por um longo período", frisou o representante da Fenprof. "No ano passado, as disciplinas de física e química perderam 400 profissionais, que se aposentaram, e entraram apenas dois para substituí-los". Ele chamou a atenção ainda para os salários, que, líquidos, variam entre 1.050 (R$ 5.775) e 1.900 (R$ 10.450) euros por mês, insuficientes para a sobrevivência de várias famílias, que sofrem com a disparada da inflação. Em março, a pressão sobre o governo será engrossada pelos médicos, que marcaram greve nos dias 8 e 9. A alegação para a paralisação é o descompromisso do Ministério da Saúde com os pleitos salariais da categoria.
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Risco do populismo
Tanta insatisfação só alimenta o populismo hoje abraçado pela extrema-direita, destaca a economista Sandra Utsumi, diretora-executiva do Haitong Bank. Em Portugal, esse espectro político é representado pelo Chega, que viu sua bancada na Assembleia da República passar de um para 12 deputados, tornando-se a terceira maior. A legenda, inclusive, já se coloca como alternativa para alianças em um futuro governo, apostando na derrocada da gestão de António Costa, que mantém maioria absoluta no Parlamento, mas vê seu ministério se desfazer mês a mês e sua popularidade ruir. Na Espanha, o Vox também se tornou a terceira força política do Congresso. Há muitas chances de a França ver a ultradireita chegar ao poder, caso os partidos mais moderados não consigam construir candidaturas viáveis.
Presidente do Fórum de Integração Brasil-Europa (Fibe), o professor Vitalino Canas acredita que os governos têm musculatura suficiente para conter movimentos populistas, mas, muitas vezes, tenderão a ser menos tolerantes com ameaças à democracia. O manejo sem traumas de toda a insatisfação passa, no entanto, pelo controle da inflação, que afeta, principalmente, os mais pobres, mais vulneráveis aos discursos extremistas.
Para o economista José Roberto Afonso, pesquisador da Universidade de Lisboa, os europeus têm dificuldades para enfrentar os desafios que se colocaram no horizonte, pois muitos desconhecem o que é inflação. Ele afirmou, porém, não ver muito espaço para a propagação do populismo na região. "O populismo oferece soluções fáceis, estimula o ódio, mas não acho que há uma onda radical de direita como alguns esperam", complementou.
Apesar dos graves problemas atuais, Miguel Relvas disse que a Europa ainda é a melhor região do mundo para se viver, mais equilibrada, mais justa, ainda com boas oportunidades. "Os governos, contudo, terão de enfrentar desafios enormes para garantir a manutenção do mínimo de bem-estar social, promovendo reformas profundas", concluiu.
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