Em 48 dias de protestos, desde o autogolpe frustrado do líder esquerdista Pedro Castillo, o Peru registrou 46 mortes diretamente relacionadas à convulsão social. Na tentativa de aplacar a tensão política, a presidente Dina Boluarte — que assumiu o poder depois da destituição e da prisão de Castillo — aproveitou uma entrevista à imprensa estrangeira para fazer um chamado à "trégua nacional". "Convoco minha amada pátria para uma trégua nacional para poder estabelecer mesas de diálogo, fixar a agenda de cada região e desenvolver nossos povos", declarou. "Não me cansarei de convocar o diálogo, a paz e a unidade." O Peru se preparava, ontem, para mais um dia de violentos protestos, após a chegada de mais caravanas a Lima.
Boluarte tornou a descartar a renúncia, uma das principais demandas dos manifestantes, em sua maioria, camponeses da região andina. "Sairei quando tivermos convocado as eleições gerais (...) Não tenho a intenção de permanecer no poder", disse. "Minha renúncia resolveria a crise e a violência? Quem assumiria a Presidência da República?", questionou. Ela acrescentou que a nova legislatura do Congresso, "sem sombra de dúvida", confirmará em fevereiro a antecipação das eleições, previstas para abril de 2024. Na última segunda-feira, centenas de manifestantes que marchavam em Lima ensaiavam uma radicalização. "Agora é guerra civil!", exclamavam. "Não somos um, agora somos dois, agora somos todos, em uma só voz!", gritavam.
A presidente garantiu que persegue uma agenda de diálogo com os manifestantes. No entanto, lamentou que alguns governadores regionais estão sequestrados por grupos violentos e reconheceu a existência de uma "agenda política bem desenhada", focada em demandas inconstitucionais. Boluarte enviou um recado a Castillo: "Aqui não há vítima, senhor Castillo; aqui há um país que sangra, produto de sua irresponsabilidade". A chefe de Estado frisou aos jornalistas estrangeiros que Castillo tenta se vitimizar para dizer que houve um golpe no país. "Ele foi o autor do seu próprio golpe", atacou. "Era conveniente para Castillo dar um autogolpe de Estado, para se vitimizar e mobilizar todo esse aparato paramilitar e não responder ao Ministério Público pelos atos de corrupção pelos quais está sendo denunciado."
Vice-presidente do Congresso da República e deputada pelo partido Fuerza Popular, Martha Moyano disse ao Correio que concorda com a trégua solicitada por Boluarte, sob a lógica de que os manifestantes apresentarão propostas concretas. "Podemos iniciar uma mesa de diálogo e fazer acordos para conseguir coisas das quais os peruanos necessitam", afirmou, por telefone. Ela denuncia a existência de um grupo que não compactua com o diálogo e exige a instalação de uma Assembleia Constituinte. "Mas ela não está contemplada em nossa legislação. Uma reforma constitucional deve passar pelo Congresso", advertiu Moyano.
Regionalização
De acordo com a parlamentar, os manifestantes transmitem, nas ruas, uma única exigência: a Assembleia Constituinte. "É o que querem: negar a Constituição e fechar o Congresso. Como vão sentar e conversar sobre isso? São temas que passam pelo Legislativo, não pelo Executivo", reforçou Moyano. Ela disse que cada região recebe um orçamento do Estado para solucionar as queixas dos manifestantes. "O acesso à água, à saúde e à educação é responsabilidade do governo regional. Não cabe ao Executivo resolver essas questões. No entanto, alguns governadores regionais têm apoiado os protestos."
O analista político Alfredo Torres, presidente do instituto de pesquisas Ipsos Perú, avalia que a narrativa radical alimentada por Pedro Castillo e por seus seguidores é a de que o líder esquedista foi vítima de um golpe por parte do Congresso e do Judiciário. "O que aconteceu foi o contrário. A narrativa funciona como tema de identidade étnica. A imagem de Castillo como um camponês andino foi bem vendida. Seus seguidores não querem conversar com Dina, pois a consideram uma traidora", observou. Para Torres, as demandas das ruas são inviáveis, por incluírem a renúncia da presidente, a dissolução do Congresso e a convocação de uma Constituinte. "Estão atacando aeroportos, incendiando delegacias e bloqueando delegacias."
Fernando Tuesta, cientista político da Pontificia Universidad Católica del Perú (PUCP), disse ao Correio ver com "muito ceticismo" as declarações de Boluarte. "Elas chegam tarde demais. O conflito social avançou muito. Não sabemos como as manifestações vão terminar. O aparato policial mobilizado jamais foi visto", afirmou. Ele concorda que as demandas regionais são específicas. "O problema é que os manifestantes não reconhecem Dina Boluarte. A ação do governo tem sido repressiva. Por isso, um número tão alto de mortos. As autoridades seguem cometendo erros. Chegaram a dizer que a cidade de Puno não faz parte do Peru, e que, por ter população da etnia aimará, se aproxima mais da Bolívia", concluiu Tuesta.