A luta é vista pelos chancas, pelos aimaras e pelos quéchuas como uma questão histórica. "É um embate contra um Estado que tem 200 anos de República e que segue marginalizado. É contra o racismo", desabafou à agência de notícias France-Presse Germán Altamirano, um agricultor de 75 anos que ostentava um chapéu tradicional de estampas coloridas. Do sul do Peru, na região andina, milhares de chancas e de integrantes de outras etnias partiram, nos últimos dias, em direção a Lima. Até 40 horas dentro de ônibus ou de caminhões têm um propósito: exigir a renúncia da presidente Dina Boluarte, que ascendeu ao Palácio de Miraflores após o esquerdista Pedro Castillo tentar um autogolpe, em 8 de dezembro, antes de ser deposto pelo Congresso e preso.
"Dina, escuta, os Chancas estão a caminho!", gritavam os camponeses desta etnia peruana, ao saírem de Humay, 200km ao sul de Lima. Além da saída de Boluarte, pedem a dissolução do Congresso, uma nova Assembleia Constituinte e a realização imediata das eleições. Dezenas de camponeses deixaram Cusco, antiga capital do império inca, na noite de segunda-feira, começando uma viagem de 1.100km. Em Puno, 387km ao sul, perto da fronteira com a Bolívia, também houve mobilização semelhante.
Um dos líderes da marcha até a capital, o camponês e sociólogo Abdón Félix Flores Huamán classificou como "dura" e "muito caótica" a vida no Peru. "Um agricultor ganha 930 soles (ou cerca de R$ 1,2 mil) e tem até dois familiares para sustentar. Se um peruano não é capaz de dar a vida pelo seu país, não é peruano. Seguiremos lutando por nossos irmãos que deram a própria vida. Também estamos dispostos a isso."
Na antevéspera da "Tomada de Lima", Boluarte ressaltou que "os líderes da oposição têm a obrigação e o dever de chamar à calma e à paz". "É preciso defender a democracia. Não sigamos polarizando o país. (...) Sabemos que querem tomar Lima. (...) Eu os convoco a tomar Lima, sim, mas em paz, em calma. Espero por vocês no palácio do governo para dialogarmos sobre as agendas sociais que tiverem", declarou a presidente.
Boluarte criticou a tática dos manifestantes de interromperem o tráfego nas principais rodovias do Peru, como forma de protesto contra o governo. "É preciso chamar à reflexão esses senhores, que, por motivos justos, saem e protestam pacificamente, em grande maioria. Contudo, bloquear rodovias, não permitir a entrada de caminhões que levam gás e combustível, deixa de ser um protesto pacífico", disse. De acordo com ela, "o Estado de Direito não pode estar sujeito ao capricho nem ao deleite daqueles que mostram desprezo pela democracia e apenas fomentam divisão, confronto e ódio entre os peruanos". Ontem, havia 94 piquetes em rodovias localizadas em oito das 25 regiões do país. Durante a madrugada, um trecho da rodovia Panamericana Norte foi liberado pelas forças de segurança.
Em cinco semanas, foram contabilizados 50 mortos — 41 civis em enfrentamentos com as forças de segurança, oito civis por acidentes de trânsito e fatos ligados aos bloqueios, e um policial queimado vivo. O número de feridos chega a 1.140 — 698 civis.
Convergência
Professor de ciência política da Pontificia Universidad Católica del Perú (PUCP), Fernando Tuesta explicou ao Correio que as manifestações de oposição ao governo e à própria representatividade política não terminaram. "Os protestos deixaram de estar localizados e escolheram Lima como um ponto de convergência. Isso é muito simbólico, porque é como se a capital estivesse separada do resto do país, o que de fato ocorre, de alguma maneira", afirmou. Segundo ele, os cidadãos de Lima não sentem a mesma tensão, em termos de agitação social, como em determinadas regiões, principalmente no centro-sul andino.
"O governo não sabe como enfrentar essa situação. As forças de segurança têm adotado meios repressivos, com um custo de 49 mortos, e trataram de bloquear as rodovias, para que os camponeses da etnia chanca não consigam se delocar e se aproximar de Lima", advertiu Tuesta. A previsão é de que parte das caravanas chegue à capital ainda hoje — o chamado "Dia D" está marcado para amanhã. "Tudo dependerá da reação das autoridades ante essas manifestações, do grau de violência desses protestos, do enfrentamento com a polícia e das decisões a serem tomadas pelo governo e pelo Congresso. Há muita expectativa e tensão em relação o que pode ocorrer", acrescentou o professor.
Tuesta alertou para a existência de uma fratura social no país, repleta de discursos — uma prática conhecida como 'terruqueo'. "Trata-se de acusar os manifestantes de serem terroristas, ou terrucos, de acordo com o neologismo peruano. Temos visto muito classismo e muito racismo no Peru. A crise vai bem além de um conflito político; tem matizes sociais e culturais", comentou.