Peru

Suspeita de genocídio no Peru preocupa Estados Unidos e ONU

Ministério Público investiga a presidente Dina Boluarte e outras autoridades pela morte de dezenas de civis durante manifestações, em pouco mais de um mês. Washington apoia inquérito e pede moderação. Nações Unidas exigem garantia aos direitos humanos

Entre os 17 caixões conduzidos pelas ruas de Juliaca, no extremo sul do Peru, o que levava o corpo de Edgar J. Huaranca trazia uma acusação escrita em um papel: "(A presidente) Dina (Boluarte) me assassinou a balas". O rapaz de 22 anos e outros 16 manifestantes foram mortos pela polícia, durante confrontos, na última segunda-feira. O Ministério Público abriu uma investigação contra Boluarte; além do presidente do Conselho de Ministros, Alberto Otárola; do ministro do Interior, Victor Rojas; e do ministro da Defesa, Jorge Chávez, por suposto genocídio. Em 34 dias, os protestos — que se espalham por várias cidades do país — deixaram 47 mortos, além de 50 civis e 300 policiais feridos. Os Estados Unidos apoiaram a investigação, pediram "moderação" e defenderam que o uso da força contra as manifestações seja reduzido "ao mínimo". 

"Reconhecemos o direito ao protesto pacífico e à expressão de queixas por meio de canais democráticos, e fazemos um apelo à calma, ao diálogo e para que todas as partes exerçam moderação e não violência", declarou um porta-voz do Departamento de Estado americano. "Encorajamos o governo a usar o mínimo de força para proteger os cidadãos, a propriedade e a livre circulação de pessoas e bens." A chancelaria dos EUA acrescentou que "apoia o compromisso do governo peruano de investigar todas as mortes e garantir que suas forças de segurança respeitem a lei e a ordem, de acordo com os direitos humanos e a legislação peruana".

Uma missão de observação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos desembarcou em Lima para avaliar "a situação dos direitos humanos no âmbito dos protestos sociais". Na noite de terça-feira, a Organização das Nações Unidas (ONU) exortou ao governo Boluarte que "tome medidas urgentes para garantir o respeito aos direitos humanos, incluindo o direito à manifestação pacífica". O país enfrenta uma rotina de velórios coletivos, bloqueios e tentativas de ocupação de aeroportos. Os piquetes em rodovias se estenderam a oito das 25 regiões do Peru, afetando Tacna, Moquegua, Puno, Cusco, Apurímac, Arequipa, Madre de Dios e Amazonas. Também em Juliaca, o policial José Luis Quispe, 29 anos, fazia uma patrulha quando foi atacado e queimado vivo, na noite de segunda-feira. 

Autogolpe

A onda de violência teve início em 7 de dezembro, quando o ex-presidente esquerdista Pedro Castillo tentou fechar o Congresso e governar por decreto. O autogolpe fracassou,e Castillo foi preso e Boluarte assumiu o poder. Yunior Luque Reyems, 19 anos, lamenta que o amigo Edgar esteja na lista de mortos pela repressão. "A Polícia Nacional do Peru deu ordens para os agentes dispararem contra civis que protestavam em Juliaca" , desabafou ao Correio. "Edgar foi um grande amigo trabalhador, lutador e humilde. Ele tinha muitos sonhos pela frente. Também foi um herói, aqui em Juliaca, por defender a sua pátria", acrescentou.

Segundo Yunior, o amigo estava insatisfeito com o cenário político no Peru e, por isso, resolveu somar-se aos protestos. Os dois se conheciam desde 2016. "A situação aqui, em Juliaca, é muito grave e triste, ante a perda de tantos cidadãos que defendiam o país da corrupção", disse. Em Cusco, 344km ao norte de Juliaca, a polícia cercou o Aeroporto Alejandro Velasco Astete com blindados. Houve choques com manifestantes. Cusco é o principal acesso para a cidadela inca de Machu Picchu, uma das sete maravilhas do mundo moderno e patrimônio mundial da humanidade. Também ontem, de acordo com a agência de notícias France-Presse, centenas de pessoas foram às ruas de Arequipa, a segunda maior cidade do país, para exigir a renúncia de Boluarte. Em Tacna, na fronteira com o Chile, os moradores começaram uma paralisação por tempo indeterminado. Houve queima de cabines de pedágio e tentativa de saque a um shopping center.  

Professora de ciência política da Universidade George Mason (na Virgínia) e vice-presidente da Associação de Estudos Latino-Americanos (Lasa), Jo-Marie Burt afirmou ao Correio que Boluarte "não quis dar-se conta de que herdou um país em grave deterioração institucional". "Isso se evidencia no fato de que o Peru teve seis presidentes em cinco anos. Quase todos os ex-presidentes foram acusados ou condenados por graves atos de corrupação. A grande maioria dos peruanos expressa insatisfação com o sistema político", acrescentou a especialista em política peruana. Segundo Burt, ante o saldo de 17 mortos na última segunda-feira, o governo somente prometeu restaurar a ordem. "Não houve compromisso de escutar a sociedade, que sente um cansaço generalizado com o status quo."

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"A presidente Dina Boluarte chegou a anunciar que ficaria no cargo até 2026, o que causou uma reação imediata. Apesar de ter recuado e de dizer que perdiria ao Congresso a antecipação das eleições, sua resposta aos protestos sociais — que pedem sua renúncia e eleições gerais antecipadas – tem sido reprimir, enviar o exército e ignorar os manifestantes, tratando-os como violentos, criminosos ou terroristas. Ela não tem sabido construir legitimidade para governar. Apenas conta com o apoio dos partidos de direita no Congresso, que não reconheceram a legitimidade de seu governo, e das forças da ordem. Boluarte não soube construir diálogos, nem desescalar os protestos. Ela não tem sabido governar. Este é um governo sem horizonte."

Jo-Marie Burt, professora de ciência política da Universidade George Mason (em Fairfax, na Virgínia) e vice-presidente da Associação de Estudos Latino-Americanos (Lasa)

Recomeço no Chile

O Congresso do Chile aprovou um novo processo para substituir a Constituição redigida durante a ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990), depois que o esforço anterior fracassou em um plebiscito realizado em 4 de setembro passado. Após esse processo, "as principais forças políticas convergiram para a ideia de que é necessário encontrar uma nova Constituição, que não é a de convenção constitucional, e sim que é necessário uma Carta Magna diferente da de 1980", explicou à agência France-Presse a advogada Claudia Sarmiento.

A tentativa de mudar a Constituição promulgada por Pinochet, submetida a dezenas de reformas desde o retorno à democracia, ganhou um impulso determinante após os protestos violentos que eclodiram em 18 de outubro de 2019. A lei que habilita a mudança constitucional foi aprovada pela Câmara dos Deputados, por 109 votos a 37 e duas abstenções — acima do quórum necessário.

O novo ensaio de reforma, que mescla órgãos eleitos e designados, havia passado pelo crivo do Senado, e deve ser sancionada pelo presidente Gabriel Boric nesta semana. "Temos aqui um modelo atípico, que não é replicado em outras partes do mundo, mas que responde à realidade política e conjuntural do Chile", esclareceu, também à AFP, o advogado constitucionalista Tomás Jordán.

Conselho

Diferentemente da tentativa anterior, cujo rascunho foi redigido por uma convenção paritária de 154 membros eleitos pelo voto popular e com cotas reservadas aos povos originários, esta nova aposta conta com três órgãos, um deles eleito pelo povo. 

Os chilenos irão eleger, em 7 de maio, um Conselho Constitucional de 50 membros, mas também haverá duas instâncias indicadas pelo Congresso, cuja composição é questionada por críticos do projeto.