A três dias do lançamento mundial, a autobiografia do príncipe Harry — intitulada Spare (O que sobra, na versão em português) — estremeceu os alicerces da família real britânica antes de mesmo de chegar às bancas. Em 416 páginas, o filho caçula do rei Charles III faz uma série de revelações que levaram críticos a acusá-lo de pretender "arruinar a monarquia". Trechos vazados pela imprensa mostram que Harry usou cocaína e outras drogas; relatam que ele matou 25 talibãs, durante serviço militar no Afeganistão; e expõem o relacionamento conturbado com o irmão, William. Primeiro na linha de sucessão do trono, William o teria agredido durante discussão sobre Meghan Markle, esposa de Harry. Em 2020, Harry abdicou das funções monárquicas e mudou-se para a Califórnia com a mulher.
Especialista em direito constitucional e em política do Reino Unido, com foco em monarquia, pela Universidade de Bangor (no País de Gales), Craig Prescott admitiu ao Correio que a autobiografia é prejudicial à família real. "Há alegações sobre o príncipe William. Mais profundamente, o livro sugere pressões e desafios que membros da família real podem enfrentar. Isso provavelmente levará a debates sobre a reforma e o futuro da monarquia", comentou. No entanto, o estudioso entende que o passado evidenciou situações parecidas. "Houve a abdicação do rei Edward VIII, em 1936, e as dificuldades entre Charles e a princesa Diana, no início da década de 1990. Em ambas ocasiões, a monarquia prosseguiu. Ela está em transformação, com um foco maior sobre o futuro da linha sucessória", disse.
Prescott imaginava a possibilidade de que Harry e Meghan retornassem ao seio da família real e desempenhassem um papel importante nos próximos anos. "Agora, isso é algo muito difícil de imaginar. O livro revela a profundidade da rixa entre William e Harry, e me parece dificil ver como ela pode ser superada. Parece que Harry quer alguma forma de responsabilização pública ou de desculpas pelo que ele acredita ter ocorrido."
Críticas abertas
Jonathan Sacerdoti — jornalista britânico e comentarista sobre a família real — concorda que a autobiografia de Harry é "um dos livros potencialmente mais prejudiciais para a monarquia em muitos anos". "De forma direta, Harry ataca aspectos do comportamento de sua própria família e critica abertamente a família real como instituição. Seu ataque é tanto pessoal quanto organizacional. A forma como se refere a William mostra um claro senso de rivalidade com o irmão mais velho", explicou à reportagem. "Mas Harry também é muito crítico em relação ao próprio rei, ao sugerir que o Palácio de Buckingham deliberadamente vazou informações contra ele e Meghan, para de algum modo danificar sua reputação."
De acordo com ele, os pontos mais sensíveis da obra foram as críticas diretas a Charles III e ao sistema de valores da família real. "Charles III acaba de iniciar o reinado, e parte de seu trabalho é erigir sua reputação existente, para que os súditos o apoiem cada vez mais. No livro, Harry pinta o pai como antipático e pouco carinhoso, o que não será bem recebido. O mesmo vale para William, príncipe de Gales: as tentativas de retratá-lo como explosivo e violento vão contra a imagem que ele deseja transmitir", acrescentou Sacerdoti.
A revelação sobre as mortes de 25 talibãs atraiu críticas de militares britânicos e da própria milícia fundamentalista islâmica afegã. "Harry está colocando sal nas feridas do povo afegão", advertiu ao Correio Mohammad Suhail Shaheen, chefe do escritório político do Talibã em Doha (Catar) e ex-porta-voz. Pouco depois, ele publicou nas redes sociais que o príncipe britânico cometeu crimes contra a humanidade. "Eles (os talibãs) eram guerrilheiros pela liberdade do próprio país. Harry era um invasor, e sua causa, ilegítima. Enquanto os nossos homens eram heróis, você era o inimigo. Até hoje, todos os dias as pessoas visitam os túmulos dos heróis e honram sua memória, mas lançam maldição sobre Harry", escreveu o talibã.
Sacerdoti ressaltou que a menção às operações no Afeganistão foi muito questionada por caracterizar as Forças Armadas britânicas de modo negativo. Na autobiografia, Harry confidenciou que pensou nos talibãs executados como "peças de xadrez removidas do tabuleiro". "Isso sugere que Harry foi treinado para considerar aqueles que ele matou como se não fossem humanos", disse o comentarista real.