A visita a um campo minado começa com observações fundamentais sobre segurança, que podem salvar vidas. Afinal, quando se está a poucos passos de explosivos mortais enterrados, é preciso prestar muita atenção.
Estacas vermelhas no chão indicam perigo. Quem continuar andando, correrá o risco de pisar em uma mina.
Estacas brancas são sinais de caminho limpo e seguro. E as estacas pretas mostram onde ficava uma mina antitanques, cujos explosivos já foram detonados.
O uso de equipamento de proteção é fundamental. Ele inclui um capacete com visor, que cobre seu rosto de uma orelha à outra e bem abaixo do queixo. O traje de proteção cobre quase até os joelhos, protegendo os órgãos e artérias vitais contra o impacto de qualquer explosão acidental.
No calor do verão libanês, o equipamento é sufocante. Os especialistas em desativação de minas começam seu trabalho logo após o nascer do sol, para aproveitar as temperaturas mais baixas.
Eles descansam por 10 minutos a cada hora. Quando o sol do meio-dia atinge seu ponto mais alto, eles já quase acabaram o trabalho do dia. É perigoso demais trabalhar quando as condições podem levar à perda de concentração. Até um escorregão momentâneo pode ser fatal.
No dia 3 de dezembro de 1997 (25 anos atrás), foi assinado o Tratado de Ottawa, como é conhecido o Tratado sobre a Proibição de Minas — o acordo internacional que proibiu as minas terrestres antipessoais, considerado um dos tratados de desarmamento mais bem sucedidos do mundo. Até hoje, 164 países concordaram em fazer parte.
Semanas antes da assinatura do tratado, o Mines Advisory Group (MAG) ganhou o Prêmio Nobel da Paz pelo seu trabalho para a proibição das minas terrestres em todo o mundo.
A organização está presente no Líbano desde 2001. A desativação das minas terrestres é uma operação imensa e continua quase diariamente. Apenas neste ano, eles terão limpado dois milhões de metros quadrados de terra e desativado cerca de 10 mil minas terrestres.
Além de lidar com bombas de fragmentação no vale do Bekaa e dispositivos explosivos improvisados (IEDs, na sigla em inglês) deixados pelo grupo Estado Islâmico no nordeste do país, o trabalho principal envolve a desativação das minas na fronteira entre o Líbano e Israel.
A chamada Linha Azul foi traçada pelas Nações Unidas em 2000. Ela se destinava a marcar fisicamente a retirada de forças israelenses do sul do Líbano.
Em algumas partes, a Linha Azul é um muro alto, enquanto, em outras, é uma grade metálica que permite olhar através dela. Abaixo da superfície, existe um campo minado de 120 km projetado para formar uma barreira intransponível. Ali, foram depositadas cerca de 400 mil minas terrestres, algumas delas a cerca de um metro de distância entre si.
No vilarejo de Arab Ellouaizi, a barreira que marca o fim do Líbano e o começo de Israel fica bem no final da uma área minada. Um metro ou dois além dela fica uma torre militar israelense, atrás dos blocos de concreto cinza. Os morros à distância estão envoltos na névoa.
Esse terreno fortemente minado traz perigo para o grande número de refugiados que vão da Síria para o Líbano. Eles querem viver na terra e cultivá-la, mas não conhecem os riscos.
Três quartos da população de Arab Ellouaizi são compostos por refugiados sírios tentando ganhar a vida a centenas de quilômetros de casa. E isso traz outra razão vital para limpar a área, além da segurança.
A agricultura é a principal atividade no sul do Líbano e os agricultores estão desesperados para que a terra seja limpa e eles possam usá-la. A devastadora crise financeira do Líbano, aliada à falta de alimentos causada pela guerra na Ucrânia, significa que o aumento dos cultivos é uma prioridade cada vez mais urgente.
Abu Ghassan Awada tem uma plantação de pimentas que estão crescidas e prontas para a colheita. Acima delas, pessegueiros crescem sobre as nossas cabeças.
Ele se lembra do som das explosões à noite, quando cabras, carneiros e raposas detonavam as minas. Por isso, ele não conseguiu cultivar suas terras por anos.
"Eu costumava ser um trabalhador contratado por outras pessoas", ele conta. "Mas, agora, posso contratar gente para trabalhar na minha própria terra."
Ele ainda dedica tempo para manter e fixar a grade metálica que demarca os limites da sua fazenda. Além dela, a poucos metros de distância, a terra ainda é um campo minado ativo. Ele sabe que não deve andar por ali.
Alguns dos funcionários mais antigos do MAG fazem parte da equipe há décadas. Um grande pôster com um cedro-do-líbano na porta da sua sede mostra seus nomes e rostos.
Hiba Ghandour é gerente de programas do MAG no Líbano. Ela também se dedica apaixonadamente a garantir que várias mulheres participem do trabalho de desativação de minas, além dos homens.
"Quando anuncio nossas vagas de emprego, até acrescentar a fotografia de uma mulher fazendo o trabalho garante que podemos atingir todas as pessoas", explica ela.
Uma dessas mulheres é Suaad Hoteit. Ela começou a trabalhar quatro anos atrás e até conheceu seu noivo enquanto eles trabalhavam juntos no campo minado. Ela retira o capacete da cabeça com habilidade e descreve seu dia de trabalho.
"Pego meu detector, vou até o campo e começo a procurar", ela conta. "Quando encontro uma mina, chamo o supervisor para verificar. E, no final do dia, faço uma explosão."
Fico surpreso com a objetividade com que ela fala sobre algo tão perigoso.
"Já são quatro anos, então, é uma rotina diária", sorri. "No meu primeiro ano aqui, eu estava muito assustada. Agora, entendo o perigo. E trabalho aqui porque quero mostrar às pessoas que as mulheres podem fazer qualquer coisa. Somos fortes e independentes."
O tipo de minas terrestres que Hoteit procura ainda fere e mata muitas pessoas, em 60 países diferentes. Em todo o mundo, são cerca de 15 mortes por dia.
Haidar Maarouf Haidar foi uma dessas pessoas. Ele usa um suporte elástico branco especial na sua mão direita. Haidar retira cuidadosamente o suporte enquanto relembra o dia em que uma mina explodiu enquanto ele plantava árvores no seu jardim. O momento ainda está claro na sua memória, mesmo tendo acontecido dois anos atrás.
"Algo explodiu de repente e ouvi um som, como em um sonho", ele conta. "Eu não sabia o que havia acontecido. Em um momento, eu estava curvado sobre o solo e, no momento seguinte, algo aconteceu de repente. Fiquei inconsciente e, quando acordei, não conseguia ver meus dedos. Eles tinham desaparecido."
Haidar vira sua mão para mostrar o que sobrou dos seus dedos - apenas quatro tocos saindo da sua palma.
"Meu estado psicológico mudou, foi a primeira coisa", prossegue ele. "Eu trabalhava todos os dias, costumava fazer tudo com as mãos, quebrava pedras e rachava lenha com elas. Meu corpo era ativo."
"Agora, se usar minhas mãos, parece que existe uma corrente elétrica nelas. Com meus ferimentos nas pernas, fica difícil caminhar. Minha vida mudou totalmente. Não posso mais fazer nenhum trabalho, a não ser criar meus filhos", afirma Haidar.
Ajuda internacional
Depois de tanto sofrimento, pelo menos o Líbano está próximo da linha de chegada. Enquanto nos reunimos no campo minado de Arab Ellouaizi, Hiba Ghandour, do MAG, quer nos indicar até onde eles chegaram.
"No Líbano, nós limpamos 80% das terras contaminadas. Precisamos apenas continuar avançando e é o apoio dos nossos doadores internacionais que torna isso possível", afirma ela.
Países como os Estados Unidos, França, Noruega, Holanda e Japão estão na linha de frente do financiamento da desativação de minas terrestres. A ajuda é fundamental, mas o volume de dinheiro oferecido está diminuindo. Somente no Líbano, ele caiu de US$ 19,7 milhões (cerca de R$ 103,8 milhões) em 2019 para uma previsão de US$ 12,1 milhões (cerca de R$ 63,8 milhões) em 2023.
É difícil prever quanto tempo irá levar para limpar os 20% restantes dos terrenos minados libaneses. A variação dos fundos disponíveis é uma das razões. Mas novas tecnologias também têm grande influência sobre o prazo estimado.
No ano passado, uma nova máquina trituradora de entulho acelerou drasticamente o processo de destruição de minas. Ela retira a terra e os dispositivos escondidos, fragmentando-os antes que explodam. Às vezes, eles são detonados dentro da máquina e a grossa blindagem contém a explosão.
A máquina não substitui os especialistas em desativação, já que elas só podem trabalhar em terreno plano. Mas certamente torna o trabalho mais rápido.
Algumas das bombas maiores - as minas antitanques - também são abordadas de forma especial e inovadora. As equipes de desativação de minas estão agora tão próximas da fronteira politicamente sensível entre o Líbano e Israel que explodir as minas grandes traz o risco de causar danos à fronteira. Isso não seria bom para as frágeis relações entre os dois países.
Por isso, bastões especiais de térmite são inseridos nas minas, ainda no solo onde elas foram depositadas. O calor intenso queima os explosivos sem criar uma enorme explosão.
Com as fortes chamas à sua frente, Mohammed Atris acaricia os brotos de grama fresca que cobrem sua terra. Por décadas, o terreno era inútil, repleto de minas. Era impossível até mesmo andar sobre ele.
"Eu estava triste, deprimido e frustrado", ele conta. "Não consigo descrever a sensação de ser incapaz de usar a terra onde crescemos antes que ela fosse minada e ficasse impossível plantar ali. Era horrível."
Os vegetais que ele está cultivando foram plantados seis semanas atrás - apenas 24 horas depois que a terra foi declarada limpa e entregue de volta para ele.
"Eu não consegui esperar. A todos os que fizeram isso acontecer, agradecemos pelos seus esforços", afirma Atris.
Agachando-se para colher seus novos produtos, ele retira suavemente as raízes do solo e abre um sorriso radiante.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64112812