A Jamaica, famosa por seus atletas olímpicos e praias paradisíacas localizadas no coração do mar do Caribe, foi notícia neste mês por outro motivo: os homicídios.
Em 7 de dezembro, o primeiro-ministro jamaicano, Andrew Holmes, tomou a decisão de estender o estado de emergência que havia decretado em outubro devido ao aumento no número de homicídios ocorridos na ilha durante o ano de 2022.
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De acordo com os dados, foram registrados 1.374 assassinatos neste ano até agora, o que coloca a Jamaica entre os países com as maiores taxas de homicídios do mundo.
Quatro pessoas são assassinadas diariamente no país, segundo informou o próprio governo, em uma nação de apenas 2,9 milhões de habitantes.
O portal Insight Crime afirma que, em 2021, a Jamaica teve a maior taxa de homicídios do mundo.
De fato, Kingston, a capital, às vezes é chamada de "a capital mundial do crime".
Muitos analistas observam que, embora os principais autores dos crimes sejam as chamadas posses ou gangues, trata-se de um problema que tem raízes profundas desde a formação do país.
"A Jamaica tem esses problemas de violência por várias razões que se misturam com conflitos históricos não resolvidos que levaram ao que estamos vivendo", diz Jermaine Young, analista político especializado em questões caribenhas, à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.
E tanto Young quanto outros analistas concordam que as medidas tomadas pelos governos locais, especialmente a decretação de estado de emergência, não ajudam a resolver os problemas.
Mas o que está acontecendo na Jamaica e por que as medidas de controle tomadas pelo governo despertam críticas?
Como surgiram as gangues?
Para Young e outros analistas, o problema atual da violência tem origens que remontam à independência do país do Reino Unido, ocorrida em 1962.
"Historicamente, a divisão política contribuiu para essa violência, especialmente com o período da Guerra Fria e as crescentes batalhas ideológicas entre o Partido Trabalhista da Jamaica (JLP, na sigla em inglês), de centro-direita, e o Partido Nacional do Povo (PNP), de centro-esquerda, nas décadas de 1970 e 1980", afirma Young.
Essa profunda divisão política deu origem às gangues ou, como são conhecidas no país, posses, que atuam principalmente em Kingston.
Elas possuem, inclusive, satélites em cidades como Londres, Toronto e Nova York.
As posses controlam grande parte da capital, e seu território tem a ver com o partido com o qual estão relacionadas.
Vários relatórios recentes da Organização das Nações Unidas (ONU) e da imprensa local indicam que as gangues ligadas ao PNP controlam territórios a oeste e sul da capital, enquanto as que têm relação com o JLP controlam o leste.
"As gangues operam em algumas comunidades (especialmente aquelas que são consideradas currais eleitorais; um partido controla os votos e saques) impunemente", afirma Young.
No entanto, ele acrescenta, essas gangues costumavam viver de acordos políticos, em troca de manter a paz nas áreas sob seu controle, mas nos últimos anos isso mudou.
"Elas se tornaram mais independentes com a chegada das armas, drogas e outros negócios ilegais", explica.
E isso deu lugar a uma batalha pelos territórios.
Drogas e armas dos EUA
Durante a década de 1980, com o estabelecimento das gangues em Kingston, aconteceram dois fenômenos na Jamaica que abalaram a segurança interna.
O primeiro foi o tráfico de drogas ilícitas da América do Sul para os Estados Unidos — além da produção interna de maconha —, e o outro foi a chegada de armas.
Muitas armas que eram vendidas livremente no país americano foram parar na ilha caribenha.
Em matéria de drogas, o Departamento de Estado indicou em seus relatórios que a Jamaica é o principal fornecedor de maconha ilegal aos Estados Unidos.
Embora o uso recreativo da maconha tenha sido legalizado em cerca de 14 Estados americanos, o fato é que por muitos anos seu uso generalizado foi ilegal, razão pela qual seu comércio ajudou a fortalecer as gangues jamaicanas.
Acrescenta-se a isso que, com o aumento do narcotráfico da América do Sul para os Estados Unidos na década de 1980, a Jamaica se tornou um dos principais portos do Caribe na rota da cocaína.
Uma investigação do órgão federal responsável pela repressão e controle de narcóticos nos EUA (DEA, na sigla em inglês) indica que, embora a Jamaica tenha sido um importante ponto de passagem por décadas, em 2014, a maioria da droga que passava pelo Caribe para os EUA e até mesmo para a Europa passava pelo porto de Kingston.
"A Jamaica é um ponto de passagem para a cocaína que sai da América Central com destino aos Estados Unidos, e algumas organizações de tráfico de drogas trocam maconha jamaicana por cocaína", dizia o relatório.
Uma situação que se manteve nos últimos anos, e que também ajudou a financiar as gangues e sua estratégia baseada na violência para o controle territorial.
O que é preciso para travar essa guerra pelo controle do altamente rentável tráfico de drogas? Armas.
E as gangues não tiveram dificuldade em consegui-las, principalmente pelo acesso a armamento que existe nos EUA.
Uma investigação do jornal americano The New York Times mostrou em 2019 que milhares de armas que eram vendidas livremente e sem regulamentação nos EUA acabavam, graças a essa falta de controle, nas ruas de Kingston envolvidas em dezenas de assassinatos.
"Muitas pessoas nos EUA veem o controle de armas como um assunto puramente doméstico. Mas os vizinhos, como a Jamaica, cujos cidadãos estão sendo mortos por armas americanas, têm uma perspectiva muito diferente", explicou ao New York Times Anthony Clayton, autor de vários relatórios oficiais dos EUA sobre a Jamaica.
Estado de emergência
Esta combinação de fatores levou a Jamaica a liderar os principais rankings de violência no mundo nos últimos anos.
De acordo com o relatório da ONG Freedom House sobre a Jamaica, a taxa de homicídios foi a mais alta da região em 2021, enquanto dados do Escritório da ONU para Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês), cujo último relatório global foi em 2017, colocam o país em quarto lugar no mundo.
Os governos locais não ficaram alheios a esta situação e tentaram ao longo dos anos controlar os surtos de violência com medidas como o estado de emergência.
A última delas foi declarada há duas semanas pelo primeiro-ministro jamaicano, Andrew Holness.
"Temos algumas ameaças criminosas realmente sérias diante de nós e temos que usar todos os poderes à nossa disposição", observou o primeiro-ministro.
Esses estados de emergência permitem ao governo jamaicano ter mais poderes para levar adiante a luta contra as gangues.
Para muitos na ilha, essas medidas — que se estendem, inclusive, a áreas turísticas como Montego Bay — servem para melhorar a segurança.
"Desde que foi declarado o estado de emergência, os assassinatos foram reduzidos em 64%. É uma medida que funciona", explicou Anthony Johnson, comandante da polícia jamaicana, à agência de notícias AP.
No entanto, outros não consideram viável que os governos jamaicanos dependam somente desses decretos para resolver o que é um problema muito mais profundo.
"O problema é que esse estado de emergência, que parece ser o único recurso dos governos, além de não solucionar a raiz da criminalidade, restringe profundamente os direitos constitucionais dos jamaicanos", diz o analista Young.
Grupos de defesa dos direitos humanos denunciam, há anos, prisões arbitrárias e uso excessivo da força contra dezenas de pessoas por parte da polícia local enquanto esses estados de emergência estão em vigor.
Na verdade, a Suprema Corte da Jamaica decidiu em junho passado que era inconstitucional deter jamaicanos por meses sem julgamento, mesmo que estivesse no meio da situação de emergência.
"E a redução de casos também não é tão verdade quanto dizem. Há grandes áreas na Jamaica em que essa medida já dura mais de dois anos, e os índices continuam piores. É uma medida que não ataca a raiz da questão", diz Young.
"Muitos consideram que não haverá avanço sem antes reduzir a corrupção e, sobretudo, eliminar os vínculos que existem entre os partidos políticos e as gangues, para depois poder trabalhar na redução dos índices de violência", conclui o analista.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64093991