Afeganistão

Ativistas repudiam decisão do Talibã que proíbe mulheres nas universidades

Milícia fundamentalista que comanda o país desde agosto de 2021 proíbe afegãs de frequentarem o ensino superior "até novo aviso". Decisão aprofunda isolamento por gênero. Ativistas veem retirada de liberdades

Rodrigo Craveiro
postado em 21/12/2022 06:00
 (crédito: AAMIR QURESHI)
(crédito: AAMIR QURESHI)

Foi mais um capítulo da derrocada dos direitos humanos no Afeganistão e da consolidação de um regime draconiano islâmico no país. Em maio passado, a milícia fundamentalista islâmica Talibã ordenou o retorno do uso do hijab (véu islâmico). Seis meses depois, o Ministério para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício — reinstalado pelo Talibã desde o retorno da milícia ao poder, em agosto de 2021 — proibiu as afegãs de frequentarem parques públicos. Ontem, as autoridades talibãs anunciaram que as mulheres do Afeganistão não mais poderão ter acesso à educação universitária. 

"Recomenda-se que implementem a ordem de suspender a educação das mulheres até novo aviso", indica carta assinada pelo ministro do Ensino Superior, Neda Mohammad Nadeem, enviada a todas as universidades públicas e privadas. A medida vale por tempo indeterminado. Três meses atrás, milhares de cidadãs realizaram provas para entrarem nas universidades, uma espécie de vestibular. As universidades se viram obrigadas a adotarem novas normas, como a segregação por gênero nas salas de aula e nas entradas dos prédios. 

Suhail Shaheen, chefe do Escritório Político do Talibã em Doha (Catar) e ex-porta-voz do grupo, afirmou ao Correio, por telefone, esperar que a questão seja "resolvida amigavelmente à luz das normas islâmicas o mais rapidamente possível". "Acho que o acesso à educação em hijab (véu islâmico) é o direito de toda menina e mulher do Afeganistão. Não sei sobre a autenticidade desta decisão, estou tentando confirmar, mas, como é tarde da noite em meu país, não tem sido possível", disse. 

"Quando as meninas afegãs foram proibidas de ir à escola secundária, no começo deste ano, imaginei que isso pudesse acontecer. Se não existe escola secundária, também não há universidade", explicou ao Correio Nadia Ghulam Dastgir, 37 anos, a ativista afegã que passou uma década disfarçada de garoto para trabalhar e alimentar sua família, durante o primeiro regime do Talibã (1996-2001). "Os talibãs têm retirado, gradualmente, todas as liberdades das mulheres e das meninas de meu país." 

Em 2006, Nadia mudou-se do Afeganistão para Barcelona, onde se submeteu a uma cirurgia de reconstrução da face, depois de ser desfigurada pela explosão de uma bomba. Uma década depois, na Espanha, Nadia fundou a organização não governamental Ponts per la pau ("Pontes para a paz", em catalão). "Nós tentamos dar oportunidades de educação às meninas e mulheres do Afeganistão. Elas têm sofrido muito! Hoje, recebi várias mensagens de garotas que expressaram pouca esperança de que possam frequentar a universidade ou a escola. A comunidade internacional nada faz pelas afegãs. A educação é um direito nosso. O mundo precisa se levantar por elas e oferecer-lhes apoio."

Ativista pelos direitos das mulheres, a afegã Nilofar Yousefi, 24, disse ao Correio que suas conterrâneas não podem levantar a voz, caso contrário, serão silenciadas.  "A comunidade internacional não deve permitir que os direitos delas sejam arrebatados. Um país onde as mulheres não podem estudar jamais poderá progredir", advertiu. 

Eliminação

Natural da província de Parwan (nordeste) e asilada na Espanha há 11 meses, Sahar Nabizada, 32, acusa o Talibã de pretender "eliminar" as mulheres afegãs. "Para chegarem a esse fim, não deixam que as meninas estudem. Eles têm medo de as mulheres se tornarem poderosas e poderem fazer tudo o que quiserem. Não existe futuro algum para as afegãs", lamentou à reportagem. "Na verdade, há um futuro sombrio. Elas não podem estudar, nem trabalhar, nem frequentar a universidade. Essa decisão do Talibã é péssima."

Fundadora da ONG Coalizão da Liberdade, Habiba Ashna Marhoon, 32 anos, admitiu à reportagem que não se surpreendeu com o anúncio do Talibã. "Todos os afegãos sabiam que o regime tomaria esse tipo de decisão. Talvez seja uma surpresa para a imprensa estrangeira. Não para nós, afegãos, que conhecemos os talibãs. Eles querem o retorno do Afeganistão e das mulheres afegãs à Idade da Pedra. É isso o que têm feito", desabafou. Habiba adverte que a medida impactará as próximas gerações. "Elas pensarão e agirão de modo diferente da nossa sociedade. Isso cortará o Afeganistão do resto do mundo. As pessoas começam a se levantar contra o Talibã. O regime está dando motivos à população para um levante."

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Vozes afegãs

Nilofar Yousefi, ativista afegã pelos direitos das mulheres, 24 anos, asilada em Madri
Nilofar Yousefi, ativista afegã pelos direitos das mulheres, 24 anos, asilada em Madri (foto: Arquivo pessoal )

Nilofar Yousefi, 24 anos, ativista afegã pelos direitos das mulheres, asilada em Madri

"Os talibãs tomaram a vida das mulheres e sempre buscam meios de eliminá-las da sociedade. Os talibãs não são conscientes do islã, da sharia (lei islâmica) ou da religião. Eles apenas vivem para seus próprios interesses e para encherem seus bolsos. Para prejudicar a imagem do islã, o Talibã converteu as afegãs em vítimas das políticas mundiais. Não deixam que as mulheres recebam educação, a fim de que elas não tenham consciência."

Nadia Ghulam Dastgir, 37 anos, ativista afegã
Nadia Ghulam Dastgir, 37 anos, ativista afegã (foto: Arquivo pessoal )

Nadia Ghulam Dastgir, 37 anos, ativista afegã que se difarçou de menino para trabalhar durante o primeiro governo do Talibã

"O Talibã tem buscado eliminar, passo a passo, a vida das mulheres em meu país natal. Eles querem retirar todas as suas liberdades. A educação secundária feminina no Afeganistão foi muito importante porque hoje temos médicas, enfermeiras e professoras. Depois de retirar a oportunidade crucial de mulheres e meninas irem à universidade, o futuro será de escuridão para todas as afegãs."

Sahar Nabizada, 32 anos, ativista afegã
Sahar Nabizada, 32 anos, ativista afegã (foto: Arquivo pessoal )

Sahar Nabizada, 32 anos, ativista afegã, também asilada na Espanha

"Duas décadas atrás, o Talibã não deixava as mulheres trabalharem e as meninas estudarem. Agora, acontece o mesmo. A diferença é que as afegãs não querem permanecer caladas, desejam erguer a voz. Acreditamos que o regime talibã é o mesmo que governou o país entre 1996 e 2001."

Habib Marhoon, ativista afegã
Habib Marhoon, ativista afegã (foto: Fotos: Arquivo pessoal )

Habiba Ashna Marhoon, 32 anos, ativista afegã, fundadora da ONG Coalizão da Liberdade

"A decisão de impedir as mulheres de frequentarem a universidade não é nova para o Talibã. Na última vez que ascendeu ao poder, eles proibiram as afegãs de irem à escola e à faculdade. O Talibã acredita que a educação do século 21 e o ensino universitário são pecaminosos. A única educação permitida é a islâmica."

  • Nilofar Yousefi, ativista afegã pelos direitos das mulheres, 24 anos, asilada em Madri
    Nilofar Yousefi, ativista afegã pelos direitos das mulheres, 24 anos, asilada em Madri Foto: Arquivo pessoal
  • Nadia Ghulam Dastgir, 37 anos, ativista afegã
    Nadia Ghulam Dastgir, 37 anos, ativista afegã Foto: Arquivo pessoal
  • Sahar Nabizada, 32 anos, ativista afegã
    Sahar Nabizada, 32 anos, ativista afegã Foto: Arquivo pessoal
  • Habib Marhoon, ativista afegã
    Habib Marhoon, ativista afegã Foto: Fotos: Arquivo pessoal

Eu acho...

 (crédito: Arquivo pessoal)
crédito: Arquivo pessoal

"As execuções públicas são realizadas em muitos países islâmicos, bem como no Afeganistão, em consonância com a lei islâmica. Mas elas também são feitas em países não-muçulmanos, de acordo com sua legislação, ainda que não publicamente."

Suhail Shaheen, chefe do Escritório Político do Talibã em Doha (Catar) e ex-porta-voz do grupo

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