Foi mais um capítulo da derrocada dos direitos humanos no Afeganistão e da consolidação de um regime draconiano islâmico no país. Em maio passado, a milícia fundamentalista islâmica Talibã ordenou o retorno do uso do hijab (véu islâmico). Seis meses depois, o Ministério para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício — reinstalado pelo Talibã desde o retorno da milícia ao poder, em agosto de 2021 — proibiu as afegãs de frequentarem parques públicos. Ontem, as autoridades talibãs anunciaram que as mulheres do Afeganistão não mais poderão ter acesso à educação universitária.
"Recomenda-se que implementem a ordem de suspender a educação das mulheres até novo aviso", indica carta assinada pelo ministro do Ensino Superior, Neda Mohammad Nadeem, enviada a todas as universidades públicas e privadas. A medida vale por tempo indeterminado. Três meses atrás, milhares de cidadãs realizaram provas para entrarem nas universidades, uma espécie de vestibular. As universidades se viram obrigadas a adotarem novas normas, como a segregação por gênero nas salas de aula e nas entradas dos prédios.
Suhail Shaheen, chefe do Escritório Político do Talibã em Doha (Catar) e ex-porta-voz do grupo, afirmou ao Correio, por telefone, esperar que a questão seja "resolvida amigavelmente à luz das normas islâmicas o mais rapidamente possível". "Acho que o acesso à educação em hijab (véu islâmico) é o direito de toda menina e mulher do Afeganistão. Não sei sobre a autenticidade desta decisão, estou tentando confirmar, mas, como é tarde da noite em meu país, não tem sido possível", disse.
"Quando as meninas afegãs foram proibidas de ir à escola secundária, no começo deste ano, imaginei que isso pudesse acontecer. Se não existe escola secundária, também não há universidade", explicou ao Correio Nadia Ghulam Dastgir, 37 anos, a ativista afegã que passou uma década disfarçada de garoto para trabalhar e alimentar sua família, durante o primeiro regime do Talibã (1996-2001). "Os talibãs têm retirado, gradualmente, todas as liberdades das mulheres e das meninas de meu país."
Em 2006, Nadia mudou-se do Afeganistão para Barcelona, onde se submeteu a uma cirurgia de reconstrução da face, depois de ser desfigurada pela explosão de uma bomba. Uma década depois, na Espanha, Nadia fundou a organização não governamental Ponts per la pau ("Pontes para a paz", em catalão). "Nós tentamos dar oportunidades de educação às meninas e mulheres do Afeganistão. Elas têm sofrido muito! Hoje, recebi várias mensagens de garotas que expressaram pouca esperança de que possam frequentar a universidade ou a escola. A comunidade internacional nada faz pelas afegãs. A educação é um direito nosso. O mundo precisa se levantar por elas e oferecer-lhes apoio."
Ativista pelos direitos das mulheres, a afegã Nilofar Yousefi, 24, disse ao Correio que suas conterrâneas não podem levantar a voz, caso contrário, serão silenciadas. "A comunidade internacional não deve permitir que os direitos delas sejam arrebatados. Um país onde as mulheres não podem estudar jamais poderá progredir", advertiu.
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Eliminação
Natural da província de Parwan (nordeste) e asilada na Espanha há 11 meses, Sahar Nabizada, 32, acusa o Talibã de pretender "eliminar" as mulheres afegãs. "Para chegarem a esse fim, não deixam que as meninas estudem. Eles têm medo de as mulheres se tornarem poderosas e poderem fazer tudo o que quiserem. Não existe futuro algum para as afegãs", lamentou à reportagem. "Na verdade, há um futuro sombrio. Elas não podem estudar, nem trabalhar, nem frequentar a universidade. Essa decisão do Talibã é péssima."
Fundadora da ONG Coalizão da Liberdade, Habiba Ashna Marhoon, 32 anos, admitiu à reportagem que não se surpreendeu com o anúncio do Talibã. "Todos os afegãos sabiam que o regime tomaria esse tipo de decisão. Talvez seja uma surpresa para a imprensa estrangeira. Não para nós, afegãos, que conhecemos os talibãs. Eles querem o retorno do Afeganistão e das mulheres afegãs à Idade da Pedra. É isso o que têm feito", desabafou. Habiba adverte que a medida impactará as próximas gerações. "Elas pensarão e agirão de modo diferente da nossa sociedade. Isso cortará o Afeganistão do resto do mundo. As pessoas começam a se levantar contra o Talibã. O regime está dando motivos à população para um levante."
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Vozes afegãs
Nilofar Yousefi, 24 anos, ativista afegã pelos direitos das mulheres, asilada em Madri
"Os talibãs tomaram a vida das mulheres e sempre buscam meios de eliminá-las da sociedade. Os talibãs não são conscientes do islã, da sharia (lei islâmica) ou da religião. Eles apenas vivem para seus próprios interesses e para encherem seus bolsos. Para prejudicar a imagem do islã, o Talibã converteu as afegãs em vítimas das políticas mundiais. Não deixam que as mulheres recebam educação, a fim de que elas não tenham consciência."
Nadia Ghulam Dastgir, 37 anos, ativista afegã que se difarçou de menino para trabalhar durante o primeiro governo do Talibã
"O Talibã tem buscado eliminar, passo a passo, a vida das mulheres em meu país natal. Eles querem retirar todas as suas liberdades. A educação secundária feminina no Afeganistão foi muito importante porque hoje temos médicas, enfermeiras e professoras. Depois de retirar a oportunidade crucial de mulheres e meninas irem à universidade, o futuro será de escuridão para todas as afegãs."
Sahar Nabizada, 32 anos, ativista afegã, também asilada na Espanha
"Duas décadas atrás, o Talibã não deixava as mulheres trabalharem e as meninas estudarem. Agora, acontece o mesmo. A diferença é que as afegãs não querem permanecer caladas, desejam erguer a voz. Acreditamos que o regime talibã é o mesmo que governou o país entre 1996 e 2001."
Habiba Ashna Marhoon, 32 anos, ativista afegã, fundadora da ONG Coalizão da Liberdade
"A decisão de impedir as mulheres de frequentarem a universidade não é nova para o Talibã. Na última vez que ascendeu ao poder, eles proibiram as afegãs de irem à escola e à faculdade. O Talibã acredita que a educação do século 21 e o ensino universitário são pecaminosos. A única educação permitida é a islâmica."
Eu acho...
"As execuções públicas são realizadas em muitos países islâmicos, bem como no Afeganistão, em consonância com a lei islâmica. Mas elas também são feitas em países não-muçulmanos, de acordo com sua legislação, ainda que não publicamente."