Três dias depois de um incêndio matar 10 pessoas em um prédio de Urumqi, na província de Xinjiang (noroeste), raros protestos contra o Partido Comunista Chinês e o presidente Xi Jinping foram registrados em Pequim e em Xangai e se espalharam para outras cidades, incluindo Wuhan (centro) — foco inicial da pandemia da covid-19. Aos gritos de "Queremos valores universais"; "Queremos liberdade, igualdade e democracia"; e "Xi Jinping e Partido Comunista, renunciem", centenas de pessoas se manifestaram contra a "política de zero covid" implementada pelo regime.
Os chineses culpam o rígido lockdown, imposto há quase três anos, pela tragédia em Urumqi, e acreditam que o confinamento dificultou o resgate dos moradores. Nas redes sociais, surgiram denúncias de que muitas pessoas foram impedidas de sair do complexo residencial de Urumqi e que as portas de emergência estariam bloqueadas. A cidade está sob fortes restrições anticovid-19 desde agosto passado.
Em Pequim, cerca de 100 pessoas foram vistas, na noite de ontem, marchando em direção à Praça da Paz Celestial, palco de um massacre de estudantes pró-democracia, em 1989. "Não aos testes de covid, sim à liberdade", clamavam. Xangai, uma metrópole de 25 milhões de habitantes, assistiu a uma manifestação silenciosa, enquanto completava dois meses de lockdown que levaram a uma escassez de alimentos. Os protestos se concentraram perto da rua Wulumuqi — o nome em mandarim da cidade de Urumqi. "Xi Jinping, renuncie! Renuncie!", pediam as pessoas.
Em várias localidades, muitos manifestantes apenas seguravam papéis e cartazes brancos, sem qualquer mensagem, como forma de expressarem sua insatisfação. Os objetos também são vistos como símbolos da censura na China. Também houve atos de rebeldia em Chengdu (sudoeste) e em Xi'an (centro). Vídeos divulgados pelas redes sociais mostravam a polícia espancando alguns manifestantes e realizando prisões, inclusive em Xangai.
Pesquisadora da organização não governamental Human Rights Watch (China) sobre a China, Yaqiu Wang explicou ao Correio que parte da população chinesa demonstra muito nervosismo, por conta das restrições severas da "política de zero covid". "Muitos cidadãos tiveram negado o acesso aos cuidados médicos, a remédios e a outras necessidades básicas. Também estão insatisfeitos com o governo do Partido Comunista Chinês (PCC). Elas sabem que todo o controle científico e razoável da covid-19 está nas mãos da ditadura do PCC", disse.
Yaqiu lembrou que, na China, é extremamente arriscado participar de qualquer tipo de protesto. "Manifestações com mensagens políticas são as mais perigosas. O Partido Comunista Chinês pune, de forma severa, as pessoas que exigem seus direitos, que cobram democracia ou que pedem, abertamente, o fim do regime. Por isso, esses chineses têm exibido uma coragem extraordinária", sublinhou.
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Sofrimento
O advogado e ativista de direitos humanos chinês Teng Biao — professor da Universidade de Chicago — admitiu ao Correio que os protestos "sublinham a imensa tristeza e raiva disseminada por toda a China, desde a implementação da "política de zero covid". "Quase todo o chinês tem sofrido tanto por conta da política insana de Xi Jinping para enfrentar a pandemia. O tema é de grande sensibilidade na China. Sob o regime repressivo, as pessoas não rompiam o silêncio nem se levantam", acrescentou.
Para Teng, o fato de alguns manifestantes cobrarem a renúncia de Xi e do PCC indica que o regime "trouxe grande dor" para muitos cidadãos. "Os chineses que estão nas ruas arriscam a liberdade e mesmo suas vidas. O que eles querem é liberdade fundamental e dignidade humana", avaliou. Ele considera difícil prever os desdobramentos dos protestos, mas adverte que a comunidade internacional, as organizações não governamentais e os Estados democráticos precisam demonstrar apoio aos manifestantes. "Sem a solidariedade do mundo, o PCC fará o que quiser."
O risco de o regime intensificar a repressão e esmagar os protestos preocupa Yaqiu e a HRW. Segundo ela, a história mostra que o Partido Comunista Chinês fez coisas horrorosas para controlar a população. "A pior e mais conhecida foi o massacre da Praça da Paz Celestial, em que tanques passaram por cima de estudantes. Nos últimos anos, o PCC apostou na vigilância tecnológica, o que tornou mais fácil controlar as pessoas e coibir os protestos quando ainda envolvem poucas pessoas", disse ela. Yaqiu comentou que, ao longo da última década, o regime eliminou grupos da sociedade civil. "É muito duro para a população organizar algum tipo de movimento sustentado, pois não existe infraestrutura para isso. Sem frustração extrema, torna-se difícil manter qualquer manifestação."
A sinóloga norte-americana Mary Gallagher, professora de ciência política da Universidade de Michigan e autora de Authoritarian legality in China: Law, workers, and the state ("Legalidade autoritária na China: lei, trabalhadores e o Estado"), não subestima a importância dos protestos. "Eles sinalizam que muitos chineses não mais estão dispostos a tolerar a 'política de zero covid', especialmente os confinamentos, as testagens diárias, a incerteza econômica e o deslocamento de infectados. Esses atos são significativos pois ocorrem em cidades diferentes e em universidades", disse ao Correio.
"Protestos na China são mais localizados e têm raízes em queixas locais específicas. Além disso, as atuais manifestações saíram do foco da 'zero covid' para as limitações políticas do sistema chinês. As pessoas pedem liberdade de imprensa e de expressão, e até mesmo defendem a renúncia de Xi", concluiu Gallagher.