Os gritos são quase sempre os mesmos: "Liberdade!" e "Morte ao regime!". Há 68 dias, o Irã começou a assistir a uma onda de protestos incitados pela morte de Mahsa Amini, uma jovem de 22 anos presa e espancada pela polícia da moral por supostamente não usar o hijab (véu islâmico) de forma adequada. Ontem, a Organização das Nações Unidas (ONU) denunciou a intensificação da repressão à revolta, que tomou as ruas de Teerã e de várias cidades do país, inclusive no Curdistão iraniano.
"O alto comissário de direitos humanos da ONU, Volker Türk, afirma que o número crescente de mortes, devido às manifestações, e o endurecimento da resposta das forças de segurança ressaltam a situação crítica no país", declarou o porta-voz, Jeremy Laurence. Ele pediu que o regime do Irã atenda às demandas da população em matéria de igualdade, dignidade e direitos, "em vez de usarem uma força desnecessária ou desproporcional". Também exortou que Teerã "imponha, imediatamente, uma moratória sobre a pena de morte".
Na segunda-feira, durante a partida de estreia contra a Inglaterra pela Copa do Mundo do Catar, jogadores da seleção iraniana se recusaram a cantar o hino e permaneceram em silêncio. O protesto estarreceu o mundo. Um dia depois, o Irã também causou surpresa ao anunciar o início da produção de urânio enriquecido a 60% na central nuclear de Fordo, situada 180km ao sul da capital. "Nós alertamos que as pressões políticas não mudam nada", avisou o diretor da Organização Iraniana de Energia Atômica, Mohammad Eslami, citado pela agência estatal de notícias Isna.
Ativistas consultados pelo Correio admitem que o Irã assiste a uma nova revolução contra a teocracia dos aiatolás. "A maioria da população iraniana quer o fim do regime. Este é o maior movimento de protestos contra o governo. Temos certeza de que o regime chegará ao fim em breve", disse à reportagem Shima S., uma manifestante de Teerã que pediu para não ter o sobrenome divulgado. "Todos os dias o número de participantes nos protestos aumenta. Tomamos as ruas, gritamos slogans a partir de nossas casas, pichamos paredes e distribuímos folhetos. Acredito que essa é uma revolução porque está em nossas mentes e em nossos corações. Não retrocederemos de forma alguma, pois cerca de 17 mil pessoas foram presas e algumas sofrem torturas. O sistema judicial iraniano prepara a pena de morte e a execução de manifestantes", acrescentou. "Se pararmos, todos morreremos."
Por meio do WhatsApp, o iraniano curdo Ramyar Hassani, porta-voz da organização de direitos humanos curda Hengaw (em Oslo), disse que considera a resposta da ONU um bom passo, porém, insuficiente. "A comunidade internacional precisa colocar mais pressão sobre o Irã pelas graves violações dos direitos humanos e pelos crimes cometidos pelo governo e pelas forças de segurança. Desde a noite de 15 de novembro, soubemos de 45 mortes de manifestantes somente em cidades curdas, além de 1.500 feridos. Tropas foram enviadas ao Curdistão iraniano, e drones e helicópteros sobrevoam algumas localidades", afirmou.
Hassani defende que a comunidade internacional expulse diplomatas iranianos, interrompa o comércio com o Irã e imponha ao regime novas sanções financeiras. "Além disso, a comunidade internacional pode ajudar, auxiliando a diáspora iraniana e os grupos de defesa dos direitos humanos." Também baseado em Oslo, o diretor da organização Iran Human Rights (IHR), Mahmood Amiry-Moghaddam, acusou as autoridades iranianas de dispararem contra manifestantes. "Até agora, registramos pelo menos 146 assassinatos, incluindo de 51 crianças. Milhares de pessoas foram presas. Há julgamentos em massa, e muitos podem ser sentenciados à morte. A menos que a comunidade internacional envie um forte sinal à República Islâmica, poderemos enfrentar execuções em massa", advertiu, também pelo WhatsApp.
Para Amiry-Moghaddam, o Conselho de Direitos Humanos da ONU precisa votar, amanhã, a criação de um mecanismo de investigação internacional independente e de responsabilização pelos crimes cometidos durante a repressão. "Nós esperamos que o Brasil vote a favor de tal mecanismo. Os iranianos exigem seus direitos fundamentais, e a resposta do regime se dá com disparos. Países como o Brasil precisam estar do lado do povo iraniano", pediu.
Fordo
Em relação aos avanços do programa nuclear iraniano, Paul R. Pillar — especialista do Centro para Estudos de Segurança da Georgetown University — admitiu ao Correio que o enriquecimento de urânio a 60% está apenas a um passo do urânio para o uso em armamentos. "O fato de o Irã estar agora produzindo urânio nesse nível em uma segunda usina o levará mais rapidamente a ter o suficiente para construir uma arma nuclear", advertiu. Segundo Pillar, a confirmação de Teerã sobre a atividade na central de Fordo é um lembrete do "fracasso absoluto" da política de "pressão máxima" exercida pelos EUA desde que o então presidente Donald Trump abandonou, em 2018, o Plano de Ação Conjunto Global (JCPOA), um acordo firmado três anos antes entre o Irã, a Alemanha, a China, os Estados Unidos, a França, o Reino Unido, a Rússia e a União Europeia.
O especialista acredita que os líderes iranianos provavelmente ainda não se decidiram sobre a construção da arma nuclear. "No entanto, o fracasso final do Irã em se beneficiar do JCPOA certamente fortaleceu as vozes de Teerã favoráveis aos armamentos atômicos", comentou Pillar. O nível de 60% está muito acima da cota de 3,67% estabelecida pelo acordo. A fabricação de uma bomba nuclear exige um nível de enriquecimento de urânio de 90%.
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