Ucrânia

Otan diz que mísseis na Polônia podem ter sido causados por defesa antiaérea

Aliança militar ocidental afirma que míssil ucraniano caiu na Polônia ao tentar interceptar ataque da Rússia. Varsóvia também cita possibilidade de acidente. Especialistas advertem sobre risco de transborde do conflito para países vizinhos

Menos de 24 horas depois de um míssil atingir Przewodow, um pequeno povoado situado no sudeste da Polônia e a 6km da fronteira com a Ucrânia, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e o presidente polonês, Andrzej Duda, trataram de minimizar os riscos de que o incidente possa arrastar a aliança militar ocidental para a guerra. Dois trabalhadores agrícolas morreram durante o impacto do míssil. "Uma investigação está em andamento e precisamos aguardar seus resultados. Mas não temos nenhuma indicação de que isso foi o resultado de um ataque deliberado", declarou Jens Stoltenberg, secretário-geral da Otan.

"Não temos indicação de que a Rússia esteja preparando ações militares ofensivas contra a Otan. Nossa análise preliminar sugere que o incidente, provavelmente, foi causado por um míssil da defesa aérea ucraniana disparado para defender o território da Ucrânia contra ataques de mísseis russos", acrescentou Stoltenberg. "No entanto, deixe-me ser claro. Isso não é culpa da Ucrânia. A Rússia tem a responsabilidade final, enquanto continua sua guerra ilegal contra a Ucrânia", concluiu. Também na terça-feira, a Rússia lançou uma centena de mísseis contra Kiev e outras cidades da Ucrânia.

Os 30 países-membros da Otan mantêm um compromisso pela segurança coletiva, consagrado no artigo 5º de seu tratado, segundo o qual uma agressão a um Estado integrante significa um ataque a toda a aliança. Após reunião com o Conselho de Segurança Nacional, o presidente polonês, Andrzej Duda, afirmou que "absolutamente nada indica que foi um ataque intencional contra a Polônia".

De acordo com Duda, é "muito provável" que tenha sido um míssil ucraniano, que, "infelizmente, caiu no território polonês". Duda informou que o projétil era do modelo S-300, de fabricação soviética. O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, responsabilizou Moscou. "Não tenho dúvidas de que este não é nosso míssil. Creio que foi um míssil russo, com base em nosso relatório militar", disse.

Oleksiy Danilov, secretário do Conselho Nacional de Segurança e Defesa ucraniano, solicitou acesso imediato ao local do impacto para representantes da Defesa e guardas fronteiriços. A Casa Branca assegurou que não "viu nada que contradiga" a tese apresentada pelo governo da Polônia. Mesmo assim, sublinhou que "está claro que a Rússia é a responsável final deste trágico incidente".

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Prudência 

Para Charles Kupchan — especialista do Conselho sobre Relações Externas (CFR) e professor de assuntos internacionais da Universidade Georgetown —, as evidências indicam que o míssil que atingiu a Polônia era um projétil errante do sistema de defesa antiaérea ucraniano. "Foi prudente que a Polônia e seus aliados reagiram de maneira comedida, enquanto levantavam informações necessárias sobre o incidente. O fato de a queda do míssil não ter sido um ataque direto da Rússia ao território da Otan trouxe alívio aos poloneses e aos países-membros da aliança. Se tal ataque ocorresse, isso representaria um grave alargamento da guerra e provocaria reação da Otan", explicou ao Correio, por telefone. "Por tratar-se de um acidente, não creio que a Polônia precise invocar os artigos 4º ou 5º do Tratado da Otan. Isso somente faria sentido se Varsóvia acreditasse que sofreu um ataque proposital." O artigo 4º prevê consultas formais entre os 30 países-membros, caso outra nação se sinta ameaçada. 

Brendan Green, professor da Faculdade de Assuntos Internacionais e Públicos da Universidade de Cincinnati, afirmou à reportagem que incidentes como o de terça-feira em Przewodow são comuns na defesa aérea. "Radares podem travar sobre alvos errados ou podem acidentalmente direcionar os mísseis contra algo que não seja uma ameaça. Os projéteis também podem, simplesmente, ficar desorientados, o que parece ter ocorrido aqui", explicou. "Não se trata de algo muito surpreendente, dado o volume de mísseis e drones contra os quais a Ucrânia tenta se defender." 

Green descarta que a queda do míssil em território polonês tenha desdobramentos mais graves. "Se a Polônia quisesse convocar uma reunião consultiva da Otan sob o guarda-chuva do Artigo 4 do tratado da aliança, provavelmente o teria feito. Se quisesse que a Otan declarasse tal incidente como um ataque a todos os países-membros, segundo o artigo 5º, Varsóvia teria exibido uma reação muito mais contundente. Além disso, o artigo 5º não obriga a Otan a fazer nada em particular."

"Inevitável"

Especialista do Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS), em Londres, Sean Monaghan também classificou como "inevitável" o incidente de terça-feira frente à escala da agressão russa. "Ele deve servir de alerta para a Rússia e para Otan. Ambos os lados deveriam concentrar esforços para minimizar a escalada no futuro, certificando-se de que seus canais políticos e militares de comunicação sejam robustos", admitiu ao Correio. 

De acordo com Monaghan, a decisão da Otan de apurar os fatos antes de dar uma resposta a eles foi correta. "A Rússia perdeu a oportunidade de fazer o mesmo — sua opção em rotular os primeiros relatórios sobre o incidente como uma provocação foi pouco útil", disse. Ele reconheceu que qualquer culpa por esse incidente deve caber à Rússia "pelo bombardeio aéreo sem sentido de áreas civis e infraestrutura da Ucrânia, e por sua invasão ilegal e brutal".  

Green espera que a Otan responda à crise com "diplomacia intensa", na esperança de convencer os russos de que a intensificação dos disparos de mísseis contra a Ucrânia foi uma ideia ruim. "Se os ataques continuarem, minha aposta é que a Otan responda com represálias limitadas. Mas as coisas poderiam facilmente sair do controle a partir daí", advertiu. "Felizmente, este não é o cenário sobre a mesa no momento."

Sean, por sua vez, acredita que a aliança militar ocidental tomará as ações apropriadas e reforçará sua presença e suas defesas aéreas no flanco oriental, bem como sua resiliência e sua prontidão. "Este será outro exemplo de Putin alcançando exatamente o oposto do que desejava: mais Otan nas fronteiras da Rússia", previu.

Vozes de especialistas...

Arquivo pessoal - Brendan Green, professor da Faculdade de Assuntos Internacionais e Públicos da Universidade de Cincinnati

Brendan Green, professor da Faculdade de Assuntos Internacionais e Públicos da Universidade de Cincinnati (em Ohio) 

"Incidentes como a queda do míssil na Polônia têm sido preocupação constante. Se uma versão deliberada ocorresse, a Otan estaria em apuros. Um contra-ataque da aliança levaria a um risco de escalada ainda maior. Se a Otan nada fizesse, convidaria a Rússia a repetir o ataque. Se modificasse seu comportamento, interrompendo o fornecimento de armas à Ucrânia, a Otan estaria sendo coagida pela Rússia."

Arquivo pessoal - Sean Monaghan, especialista do Center for Strategic and International Studies (CSIS)

Sean Monaghan, especialista do Centro para Estudos Estratágicos e Internacionais (CSIS)

"O fato de não ter sido um ataque deliberado da Rússia a um membro da Otan não minimiza o risco de mais escalada. Este ainda é um dos momentos mais graves e perigosos da guerra até agora. É a primeira vez que o conflito atinge o soldo de um país-membro da Otan; nesse caso, a Polônia. É um exemplo vívido dos danos colaterais trágicos que são inevitáveis na guerra, e do potencial para erros de cálculo e escalada."

Arquivo pessoal - Charles Kupchan, especialista do Conselho sobre Relações Externas (CFR, pela sigla em inglês) e professor de assuntos internacionais da Universidade Georgetown

Charles Kupchan, especialista do Conselho sobre Relações Externas (CFR)

"Tivemos uma amostra da possibilidade de transborde da guerra, seja por acidente, seja de forma deliberada. Temos boas evidências sobre a importância da contenção dessa guerra e da adoção de medidas para certificarmos de que isso não leve a um conflito entre a Rússia e a Otan. É necessário mover as partes do campo de batalha para a mesa de negociações."

EUA denunciam "crimes de guerra"

Os ataques da Rússia contra a infraestrutura civil da Ucrânia constituem uma campanha de "terror" e "crimes de guerra", após o fracasso completo no campo de batalha, advertiu o chefe do Estado-Maior Conjunto dos Estados Unidos, general Mark Milley. Ele também assinalou que é pouco provável que a Ucrânia consiga expulsar militarmente a Rússia de todo o território que ocupa no país. A Rússia "impõe uma campanha de terror, uma campanha de sofrimento máximo à população civil ucraniana, com o objetivo de derrotar o moral ucraniano", afirmou Milley. "Atacar deliberadamente a rede elétrica civil, causando danos colaterais excessivos e sofrimento desnecessário à população, é um crime de guerra."