Pablo Milanés, morto nesta terça-feira (22/11) em Madri aos 79 anos, foi uma referência cultural do sistema socialista cubano e da esquerda latino-americana.
Fundador do movimento Nueva Trova junto com Silvio Rodríguez e Noel Nicola, dedicou parte de seu repertório musical às ideias suscitadas pela revolução liderada por Fidel Castro em 1959.
Mas, embora o regime castrista perdure até hoje, o apoio de um de seus artistas de referência foi se esvaindo.
Ao longo dos anos, Milanés passou a descrever o governo da ilha como "repressivo", afirmou que o socialismo era um "fracasso" e pediu a transição do atual sistema de partido único para a democracia.
Um revolucionário 'liberal demais'
Milanés, que desde criança já se destacava em programas de televisão e grupos vocais, viu triunfar a Revolução Cubana no início da adolescência.
Filho de um militar e de uma costureira, como muitos jovens da época, voltou-se para os ideais de humanismo e justiça social propostos pelo novo regime após a derrubada da ditadura de Fulgêncio Batista (1952-1959).
"A origem está no que Cuba significou no ano 59 para o mundo. Tinha 15 anos e quando mergulhei na realidade social da América Latina me tornei um revolucionário", explicou em entrevista ao jornal espanhol El País em 2015.
Na década de 1960, marcada pelo acirramento da Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética (URSS), Cuba adotou o modelo soviético e, com ele, suas inflexíveis políticas culturais.
"Pablito fazia parte daqueles que defendiam a originalidade da Revolução Cubana; uma originalidade que foi questionada após a aliança com a União Soviética, que marcou o fim do pensamento crítico", explica o cientista político cubano Carlos Alzugaray à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC.
"Apesar de apoiarem a revolução, essas pessoas viam as coisas de maneira diferente, eram mais libertárias, voltadas para os direitos dos indivíduos", acrescenta.
Campo de trabalho forçado
Assim, em um dia de 1966, agentes do regime apareceram na casa de Pablo Milanés.
"Eles me enganaram e me disseram que eu havia sido recrutado para o serviço militar. E, na verdade, fui enviado para um campo de concentração ", lembrou o cantor em um documentário de 2020 sobre sua trajetória musical.
Ele foi um das dezenas de milhares de jovens encaminhados para as Unidades Militares de Auxílio à Produção (UMAP), os campos de trabalhos forçados nos quais eram presos homossexuais, religiosos, artistas e intelectuais rebeldes; enfim, aqueles que eram considerados "desprezíveis", nas palavras do próprio Milanés.
O cantor relembrou a UMAP — de onde fugiu para logo ser preso novamente — como uma fase "brutal" em que foi vítima de maus-tratos e foi obrigado a trabalhar incansavelmente da madrugada à noite.
Décadas depois, ele repetidamente repreendeu o governo cubano por nunca ter se desculpado por isso.
Fase mais revolucionária
De qualquer forma, após sua libertação, Pablo Milanés consolidou-se não apenas como cantor e fundador da Nueva Trova, mas também como uma das principais vozes do movimento de esquerda latino-americano que patrocinou e defendeu o regime de Fidel Castro.
"Bolívar lançou uma estrela que brilhou com Martí / Fidel a dignificou / Caminhar por estas terras", diz sua famosa "Canción por la unidad latinoamericana" de 1976, que percorreu o continente.
As ditaduras militares de direita em países como Chile, Argentina e Uruguai marcaram os anos 1970 na América Latina, razão pela qual as ideias de esquerda, tendo Cuba como referência, cativaram grande parte da juventude da região.
Muitos deles ouviam Milanés, Silvio Rodríguez e outros cantores da Nueva Trova que dedicaram parte de sua música e seus esforços à promoção do socialismo, estabelecendo-se como referências da chamada "canção de protesto".
Apesar de a maioria de suas canções falar de amor e apenas uma minoria aludir à política, a década seguinte dos anos 1980 foi de crescimento e consolidação para Pablo, não apenas como artista, mas como ícone cultural da causa cubana.
"Será melhor afundar no mar/ Do que antes de trair a glória que se viveu", cantou em "Cuando te encontré" (1989), uma canção de culto aos revolucionários da época na ilha.
Desencanto
A década de 1990 foi um período turbulento para Cuba, que após a derrocada da União Soviética, sua principal benfeitora, mergulhou em uma profunda crise econômica — e, para muitos, existencial — conhecida como Período Especial.
Embora no início da década ele tivesse sido deputado da Assembleia Nacional do Poder Popular (Parlamento) de Cuba, Milanés logo começou a expressar abertamente suas divergências com o regime.
"Sou um porta-estandarte da revolução, não do governo. Se a revolução emperra, se torna ortodoxa, reacionária, contrária às ideias que a originaram, é preciso lutar", dizia então o artista, em uma de suas primeiras declarações críticas.
Mais tarde, ele explicou essa mudança de posição que pegou muitos de surpresa: "Em 1992, estava convencido de que o sistema cubano havia falhado definitivamente e o denunciei".
"Fiquei desapontado como revolucionário porque eles insistiram em continuar com uma questão que não funcionou e que não funciona até agora", alegou.
Virada final
Após o Período Especial, Milanés continuou a criticar o governo cubano, mas nunca deixou de se considerar um esquerdista e ainda em 2006 enviou uma mensagem de lealdade a um convalescente Fidel Castro (que acabou se recuperando e só morreria por dez anos depois).
"Prometo representar você e o povo cubano como este momento merece: com unidade e coragem diante de qualquer ameaça ou provocação. Um abraço, seu Pablo Milanés", escreveu ao líder, segundo o jornal oficial cubano Granma.
Na década seguinte, o artista expressou sua admiração por lideranças de esquerda mais moderadas da região, como o ex-presidente uruguaio José Mujica.
Ao mesmo tempo, o vencedor de dois Grammys latinos de melhor álbum de cantor e compositor (2006) e excelência musical (2015) endurecia o tom em suas críticas às autoridades cubanas.
"O stalinismo ainda está em vigor e a repressão impede os protestos de rua; a greve é impossível porque não há sindicatos independentes e a imprensa cubana é silenciosa ou cúmplice", disse ele em uma entrevista na TV em 2015.
O governo cubano, porém, não o retaliou — por meio das proibições de entrada e saída que frequentemente aplica a outras vozes críticas — e Milanés, que viveu em Madri seus últimos anos, visitava com frequência Havana, onde em junho passado realizou aquele que foi seu último show na ilha.
O presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel, até dedicou um obituário emocionado a ele.
Ha muerto Pablo, leemos al despertar este martes en #Rusia y el dolor llega con la noticia.
Desaparece físicamente uno de nuestros más grandes músicos. Voz inseparable de la banda sonora de nuestra generación.
Mis condolencias a su viuda e hijos, a #Cuba. pic.twitter.com/fZzJ0mqb1V
— Miguel Díaz-Canel Bermúdez (@DiazCanelB) November 22, 2022
Para o cientista político Carlos Alzugaray, Pablo Milanés "é uma figura muito importante para os cubanos e o governo percebeu que, embora algumas das coisas que ele disse o incomode, não tem escolha a não ser abraçá-lo".
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63769245
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