Reino Unido

Entenda o que levou à renúncia de Liz Truss após mandato relâmpago

Acuada por um Partido Conservador dividido e desmoralizada após a rejeição ao pacote econômico, primeira-ministra entra para a história por permanecer apenas 44 dias no cargo. Sucessor deverá ser anunciado dentro de uma semana. Especialistas avaliam desdobramentos da crise política

Com um pronunciamento de 90 segundos, a primeira-ministra britânica conservadora, Liz Truss, anunciou o fim de um governo de apenas 44 dias — o mais breve da história — e aprofundou a crise política no Reino Unido. "Eu reconheço, ante a situação, que não posso cumprir com o mandato para o qual fui eleita pelo Partido Conservador. Por isso, falei com Sua Majestade, o Rei, para notificá-lo de que renuncio ao cargo de líder do Partido Conservador", declarou Truss, em frente à 10 Downing Street, residência oficial e sede do governo. A premiê demissionária entrou em desgraça depois da queda dos ministros das Finanças e do Interior e da rejeição a um pacote ultraliberal de medidas econômicas. O sucessor deverá ser escolhido dentro de uma semana, apesar de a própria eleição de Truss, após a saída de Boris Johnson, ter durado dois meses.

Cientistas políticos apostam no ex-banqueiro bilionário Rishi Sunak, 42 anos, adepto da ortodoxia fiscal, para comandar os conservadores e o Reino Unido. A imprensa britânica especula em uma possível tentativa de retorno de Boris Johnson, após 3 anos e 44 dias  no governo. Truss permanecerá no cargo até a definição do substituto.

O processo de escolha do novo líder do Partido Conservador começa com o "patrocínio" de um nome por pelo menos 100 parlamentares conservadores britânicos. A expectativa é de que a exigência reduza para o máximo de três candidatos ao cargo. Se dois ou três postulantes conseguirem o limite de 100 indicações, o Parlamento concluirá duas rodadas de votação na segunda-feira. A votação entre os membros do Partido Conservador será on-line e se encerrará na sexta-feira. 

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Mesmo acuada, Truss deu sinais de que pretendia permanecer no posto. Downing Street chegou a assegurar que ela trabalhava com o ministro das Finanças, Jeremy Hunt, para preparar um plano econômico de médio prazo. Na quarta-feira, o próprio Hunt havia humilhado Truss, ao abandonar quase todos os cortes de impostos apresentados pelo seu antecessor, Kwasi Kwarteng, demitido em 14 de outubro. 

No discurso de renúncia, Truss reconheceu que chegou ao poder, em 5 de setembro, em uma época de "grande instabilidade econômica e internacional". "Famílias e negócios estavam preocupados sobre como pagarem suas contas. A guerra ilegal de (Vladimir) Putin na Ucrânia ameaça a segurança de nosso continente. E nosso país está retido há muito tempo em um baixo crescimento econômico", observou. "Fui eleita pelo Partido Conservador com um mandato para mudar isso", acrescentou, ao admitir o fracasso. Ela lembrou que reduziu a tarifa de energia elétrica e estabeleceu uma visão focada em economia de impostos baixos e de crescimento alto.

Logo após a renúncia de Truss, o líder da oposição trabalhista, Keir Starmer, exigiu eleições imediatas. "Os conservadores não podem responder à sua última confusão simplesmente estalando os dedos e mudando os que estão no topo sem o consentimento do povo britânico. Precisamos de eleições gerais (...) agora", afirmou, por meio de um comunicado.

AFP - AFP-Premiês Reino Unido

Eleições gerais

Nicholas Wright, pesquisador visitante do Centro para a Grã-Bretanha na Europa da Universidade de Surrey (em Guildford, no sudeste da Inglaterra), explicou ao Correio que as eleições somente se colocam como cenário possível em duas hipóteses: a perda do voto de confiança do Parlamento no governo e a decisão expressa do novo primeiro-ministro. "Não existe nenhum mecanismo para que as eleições aconteçam de outra maneira. Enquanto o novo líder conseguir reter o apoio de seus parlamentares, ele poderá governar", disse. 

De acordo com Wright, o Partido Conservador espera que apenas um candidato se apresente, o que limitaria a votação ao Parlamento, sem a necessidade de consulta aos demais membros. O novo premiê terá a missão de lidar com um partido profundamente dividido e com uma série de desafios. "Nossa economia foi muito prejudicada pelos eventos das últimas semanas, principalmente o miniorçamento apresentado por Truss. Além da baixa confiança, falta estabilidade", advertiu. Ele explicou que a partida da premiê reflete a fragmentação dentro dos Tories (conservadores), que, por sua vez, cria um vácuo de liderança no governo. "A solução seria uma eleição geral, mas o Partido Conservador sabe que enfrentaria a probabilidade de uma derrota devastadora."

Professor emérito da Universidade de Buckingham, Anthony Glees admitiu à reportagem que não existe solução prática para a crise política britânica. "A saída teórica seria a realização de novas eleições. O rei Charles III deveria dizer aos líderes do Partido Tory (Conservador) que o povo está farto desse circo e que não há outro político capaz de unificar a legenda. No entanto, as lideranças conservadoras descartaram uma eleição, e não é difícil saber o motivo — o partido tem maioria de 70 cadeiras no Parlamento e as pesquisas mostram que os Tories seriam varridos do poder, com 23% dos votos contra 51% para os trabalhistas", afirmou. 

Glees lembrou que o ex-premiê Boris Johnson avalia seu retorno à Downing Street como "interesse nacional". "Se ele regressar ao poder, trará consigo uma longa história de mentiras para o povo e o Parlamento e o fato de nada ter feito, além de promessas não cumpridas. Afinal de contas, é por isso que Truss foi eleita". disse. Apesar de reconhecer que Sunak merece ganhar, Glees alertou que o potencial candidato à sucessão é forte defensor do Brexit. "O divórcio da União Europeia é a principal causa dos problemas econômicos que enfrentamos."

Pesquisa aponta Boris Johnson como favorito

Uma sondagem divulgada pela empresa londrina YouGov, especialista em pesquisas de mercado, revela que 32% dos cidadãos britânicos preferem o retorno do ex-primeiro-ministro Boris Johnson à chefia de governo. O ex-ministro das Finanças Rishi Sunak conta com o apoio de 23%. Também foram citados os nomes do ministro da Defesa, Ben Wallace (10%); da líder da Casa dos Comuns, Penny Mordaunt; do ministro do Comércio Internacional, Kemi Badenoch (8%); e do atual titular das Finanças, Jeremy Hunt (7%). Em outra consulta, 79% dos entrevistados consideraram como correta a decisão de Truss de renunciar, enquanto 7% disseram não concordar e 14% não souberam responder. 

Eu acho...

Arquivo pessoal - Nicholas Wright, pesquisador visitante do Centro para a Grã-Bretanha na Europa da Universidade de Surrey (em Guildford, no sudeste da Inglaterra)

"Difícil ver Liz Truss ser lembrada por outra coisa que nãos seja o fracasso — a mais breve premiê da história do Reino Unido e a última primeira-ministra nomeada pela falecida rainha Elizabeth II. Truss é a pessoa cujos planos colocaram a economia britânica de joelhos e que, por isso, foi expurgada do cargo pelos mercados. As últimas semana foram caóticas e sugeriram uma líder e uma equipe sem ideia clara sobre como governar."

Nicholas Wright, pesquisador do Centro para a Grã-Bretanha na Europa da  Universidade de Surrey (em Guildford, no sudeste da Inglaterra)

Arquivo pessoal - 27/05/2018. Crédito: Arquivo Pessoal. Anthony Glees, professor da Universidade de Buckingham.

"Na minha opinião, Liz Truss será relembrada por seus recordes. Ela é a primeira-ministra mais inútil que tivemos, terá o mais curtro mandato, será a chefe de governo menos popular e a mais detestada. Seu legado será bilhões de libras esterlinas em dívidas. Na verdade, Liz Truss é estúpida: diz coisas, mas não pensa no que elas significam."

Anthony Glees, professor emérito da Universidade de Buckingham