ENTREVISTA

Yan Rachinsky: 'A democracia na Rússia é uma imitação'

Um dos fundadores da ONG Memorial, que está entre os ganhadores do Nobel da Paz deste ano, avalia que o prêmio reforça a urgência de preservar o respeito aos direitos humanos e lamenta que o governo brasileiro se oponha a fazer esse debate

Em 1988, Yan Rachinsky tinha 30 anos quando chegou à Memorial, em Moscou, e ajudou a fundar as bases da organização não governamental. O objetivo era denunciar os crimes cometidos pelo regime soviético e perpetuar a memória das vítimas. Com a erosão da União Soviética, em 1991, a Memorial ampliou seu escopo e se tornou a maior ONG em defesa dos direitos humanos da Rússia, visando combater a opressão política.

Na última sexta-feira, o Comitê Nobel Norueguês decidiu agraciar a Memorial com o Nobel da Paz — dividido também entre a ONG ucraniana Centro pelas Liberdades Civis e pelo ativista e preso político bielorrusso Ales Bialiatski.

Em entrevista exclusiva ao Correio, por e-mail, Rachinsky, 63, que é presidente do Conselho da ONG, falou sobre o significado da honraria, descartou uma pressão política sobre o presidente Vladimir Putin e admitiu que a entidade tem sofrido perseguição do Estado.

O Nobel da Paz era esperado por vocês, da Memorial?

Não, nós não esperávamos por isso. Memorial foi indicada ao prêmio por mais de uma vez. No entanto, há muitos candidatos dignos de receberem essa honraria. Além disso, o prêmio em 2021 foi concedido a Dmitry Muratov, e cidadãos de mesmo país raramente são agraciados por duas vezes seguidas.

Qual é o significado do Nobel para a ONG?

O simbolismo do prêmio atual é que ele foi concedido a representantes da sociedade civil de três países — não a Estados, mas a representantes da sociedade civil. Apesar da agressão da Rússia (com o apoio da Bielorrússia) contra a Ucrânia, os ativistas civis continuam a cooperar no interesse de pessoas específicas e para alcançar a paz.

Que tipo de mensagem o prêmio envia ao presidente Vladimir Putin?

Sinais mais do que suficientes foram dados a Putin. Tanto pela Assembleia Geral da ONU quanto pelas estruturas europeias, e por muitos Estados. O Brasil, infelizmente, não está entre eles. Em sua 52ª assembleia, em Lima, a Organização dos Estados Americanos (OEA) emitiu uma resolução condenando as ações militares da Rússia na Ucrânia. O texto não foi apoiado por nove Estados (ou um terço dos países que compõem a OEA). Entre eles, estão Brasil e Argentina. Antes de tudo, o Prêmio Nobel é um sinal para a sociedade civil, um aviso de que a prioridade dos direitos humanos segue inalterada e continua a mesma para todos.

Mas ele pode ajudar a pressionar politicamente Putin a pôr fim à guerra?

O Nobel nunca exerceu pressão política. Não ajudou nem Boris Pasternak (Nobel de Literatura em 1958), nem Andrei Sakharov (Nobel da Paz em 1975), nem Alexander Solzhenitsyn (Nobel de Literatura em 1970), nem Muratov.

Como o senhor descreveria o governo russo e o tipo de democracia em que vocês vivem?

A democracia na Rússia é uma imitação, está cada vez mais parecida com os tempos soviéticos. Não existe imprensa de oposição (muito menos televisão), não há debate em um Parlamento que só faz aprovar ordens de forma obediente, não há liberdade de associação (reunião) nem o piquete de um homem só. Nossos tribunais não são independentes.

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Quando a Memorial iniciou suas atividades e quais os principais objetivos da organização?

A Memorial começou a funcionar em 1987. As principais metas foram restaurar a verdade sobre o terror de Estado e proteger os direitos humanos. O acadêmico Andrei Sakharov foi o primeiro presidente de nossa sociedade. Somos uma comunidade de dezenas de organizações independentes, em diferentes regiões e países, conectadas por um entendimento comum de metas e de objetivos.

Que tipos de perseguições vocês têm sofrido?

Desde 2014, um número de organizações de nossa comunidade tem sido declaradas "Organizações de Agentes Externos". Nos últimos meses, a pedido do Ministério Público, a Memorial Internacional (que coordenava trabalhos em diferentes países) e o Centro de Direitos Humanos Memorial foram liquidados, pelo fato de alguns materiais não terem indicado que "agentes estrangeiros" haviam sido incluídos nos registros. Na última sexta-feira, no dia do anúncio da sentença, o tribunal de primeira instância satisfez a exigência do Ministério Público de confiscar, a favor do Estado, as instalações nas quais se encontra o arquivo reunido pela Memorial sobre centenas de milhares de vítimas do terror comunista.

A Memorial foi fechada pelo governo Putin? Qual é a situação atual da ONG?

Putin liquidou duas de nossas organizações. Existem dezenas de organizações da Memorial em diferentes regiões e países, e todas são independentes. É um trabalho árduo, mas elas funcionam.

Como o senhor vê o ataque à ponte que liga a Rússia à Crimeia? Existe o risco de um ataque nuclear russo como retaliação?

A ponte será reparada. Não haverá ataque nuclear agora, e creio ser improvável que haja no futuro.

 

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