A invasão do Capitólio, em Washington, em 6 de janeiro de 2022, por uma multidão de apoiadores de Donald Trump, pode ser vista como a consequência extrema de um guerra cultural marcada pelo uso de uma nova arma: a destruição da realidade.
Desde antes das eleições de novembro de 2016, já vinham fermentando no país teorias da conspiração que apontavam para a existência de forças do mal (a cúpula do Partido Democrata, Hollywood, gigantes da mídia, etc), que teriam surrupiado as eleições em 2021 para tirar Trump do poder.
Mas talvez essa história tivesse sido diferente, não fosse um jovem e pouco conhecido ator de Hollywood, que após levar um trote de um casal de amigos atores famosos, se tornou uma dos principais heróis, e uma das vozes mais importantes, do movimento QAnon - cujos apoiadores mantiveram um prolífico esquema de divulgação de notícias falsas e teorias da conspiração pela internet nos últimos anos.
A história desse ator, Isaac Kappy, é contada no quinto e último episódio (O Quarto Secreto) do podcast As Estranhas Origens das Guerras Culturais, da BBC News Brasil. Trata-se de uma adaptação em português da série em inglês Things Fell Apart, da Rádio 4, da BBC, escrita e apresentada pelo autor e jornalista anglo-americano Jon Ronson.
'Preciso de um cavalo!'
Isaac Kappy nasceu em 1977 em Albuquerque, Novo México. Aos 20 anos, se juntou à próspera cena de cinema independente da região.
"Ele produzia, atuava, escrevia roteiros e compunha música" contou sua mãe, Wendy Kappy, a Jon Ronson, no podcast Things Fell Apart. "Acho que ele se sentia muito bem fazendo isso. E tinha muitos bons amigos entre as pessoas com quem trabalhava."
Com sua banda Monster Paws, ele teve uma música de relativo sucesso em 2010, chamada
Na mesma época, Isaac estava conseguindo pequenos papéis em filmes e séries que estavam sendo filmados no Novo México.
No filme Thor, de 2011, ele faz o papel de
"Não temos cavalos", diz o atendente surpreso. "Só, cães, gatos, pássaros...".
Isaac também teve papéis pequenos na série Breaking Bad e no filme O Exterminador do Futuro: A Salvação.
Segundo seu melhor amigo, identificado no podcast pelo pseudônimo de Ross, Isaac "queria ser um astro, queria ser famoso". "Definitivamente era uma coisa importante para ele... ele se via dessa maneira."
Entre a banda e os papéis de ator parecia que sua carreira estava decolando. Mas, em 2011, o governador do Novo México aboliu os incentivos fiscais para produtoras de filmes e a indústria de cinema local deu uma parada.
"Várias produtoras saíram. Foi aí que vários dos amigos do Isaac e o Isaac se mudaram para Los Angeles", relatou Wendy.
Entre esses amigos, estava Ross. "Quando você sai de um lugar como Albuquerque e vai para um lugar como Los Angeles, é desanimador, porque você multiplica por cem o número de pessoas com quem está competindo, e todas elas são capazes", diz ele.
Em Los Angeles, Ross passou para atrás das câmeras, trabalhando como diretor de produção, enquanto que Isaac teve dificuldades para achar trabalho como ator. Mas uma coisa boa aconteceu com ele. Ele se enturmou com um grupo de celebridades como lembra seu velho companheiro de banda, Mario.
"Ele adorava esse pessoal. Jogavam à noite, coisas assim. Ele me mostrou vídeos. Eles ficaram tipo melhores novos amigos", disse.
Entre esses novos "amigos de verdade", segundo Ross, estava, Paris Jackson (filha de Michael Jackson) e Macaulay Culkin.
Teorias da conspiração
Ainda em Albuquerque, Isaac já começara a se interessar por teorias da conspiração. Ele assistia a vídeos antigos do YouTube que diziam que o governo americano teria sido responsável pelo ataque de 11 de setembro de 2001.
Para Wendy, "ele acreditava nisso com bastante convicção. Ele não falava muito a respeito e certamente não admitia isso em público. Sabe, era uma crença privada que ele tinha".
Mas durante as primárias presidenciais democratas dos Estados Unidos em 2016, ele se convenceu - a exemplo de muitas pessoas nos EUA - de que a elite do partido havia conspirado para evitar a vitória de Bernie Sanders, manipulando os resultados a favor de Hillary Clinton.
Ross afirmou que se Sanders tivesse ganhado, "a vida de Isaac teria sido muito diferente".
Convencido da conspiração da elite democrata, Isaac acabou sendo seduzido por outra teoria, conhecida como Pizzagate, que circulou na internet em 2016.
Ela dizia que uma pizzaria em Washington, a capital, tinha porões secretos onde se escondia o quartel-general de uma rede de tráfico sexual infantil conduzida por Hillary Clinton e a elite do Partido Democrata.
Isaac não estava conseguindo trabalhos como ator e passava muito tempo na internet, obcecado por esses "porões". Ele acompanhava os programas de Alex Jones, o principal apresentador de talk shows de conspiração dos Estados Unidos - e que chegou a dizer ter enviado repórteres à pizzaria, que disseram "que a coisa ali era bem assustadora".
Essa teoria circulava com tanta força pela internet, que, no dia 4 de dezembro de 2016, um homem armado com um fuzil AR-15 abriu fogo na entrada da pizzaria.
Ninguém saiu ferido, mas o caso teve grande repercussão, expondo o perigo da divulgação de notícias falsas. A pizzaria sequer tinha porão. O próprio atirador depois admitiu em uma entrevista na cadeia com o New York Times que "as informações sobre isso não estavam 100%".
Issac, entretanto, não parou de acreditar no Pizzagate. Ele guardava suas convicções para si mesmo. Até o dia em que resolveu "sair do armário".
A noite da 'revelação'
O momento-chave da história de Isaac Kappy é contado no podcast Things Fell Apart a partir de um relato postado em um site chamado datalounge. Jon Ronson diz que esse relato se destacou em meio a várias versões sobre o caso, porque "parece vir de alguém que conhecia bem o Isaac e se importava com ele".
Segundo o relato, em uma noite de março de 2017, Isaac estava na casa de um casal de amigos próximos de Hollywood quando, "confidenciou a eles que, após muitos meses de pesquisa exaustiva, ele havia determinado que certas pessoas em Hollywood faziam parte de uma sociedade pedófila secreta global".
"Seus amigos riram muito", segue o relato. "Ele estava falando sério? Isaac respondeu que ele estava falando muito sério. E então, sem que soubessem, veio o passo em falso crucial. Eles disseram a Isaac que ele estava certo! Eles confessaram, dizendo a Isaac que tinham um quarto secreto onde mantinham crianças em cativeiro. E havia uma criança sendo mantida em cativeiro naquele quarto naquele exato momento e se Isaac quisesse se tornar um ator famoso e bem-sucedido em Hollywood, tudo que tinha que fazer era segui-los até aquele quarto, atrás de uma parede falsa, por uma entrada secreta, e estuprar a criança. O amigo de Isaac e a esposa dele são atores, então fingir uma cara séria foi fácil."
Logo depois desse incidente, Isaac visitou seu velho colega de banda, Mario.
"Ele entrou e estava meio frenético. E eu disse, 'o que tá acontecendo, cara?' Aí ele me diz que foi convidado a se juntar aos Illuminati! 'Eles são tipo pedófilos, estão fazendo um lance de tráfico sexual'. E eu realmente não sabia o que pensar sobre isso", disse Mario.
Durante as semanas seguintes, os amigos de Hollywood de Isaac - perturbados por seu comportamento cada vez mais errático - começaram a se distanciar dele. Eles pararam de retornar suas chamadas. Ao mesmo tempo, não estava conseguindo trabalhos como ator.
"Ele veio então para Albuquerque", contou Wendy, "ficou com a gente por um mês". "Ele tava muito deprimido, perturbado com a situação. E tinha medo, sabe, porque estava guardando um segredo."
Depois de guardar esse "segredo" por oito meses, Isaac finalmente decidiu o que fazer com ele: resolveu contá-lo no programa de Alex Jones.
E ali, ele citou o ex-amigo figurão de Hollywood que tinha falado do "quarto secreto". Jon Ronson, em seu podcast, diz que tentou falar com esse ex-amigo, sem obter resposta - e acrescentou que não revelaria o nome dele devido à natureza das acusações de Isaac e a total falta de provas.
Alex Jones primeiro achou que a história contada por Isaac seria uma "pegadinha", um golpe de mídia. No fim, sugeriu que Isaac estava indo "na direção da esquizofrenia".
QAnon
O mundo das conspirações andava caótico desde o fiasco do Pizzagate e, apesar do ceticismo de Alex Jones, Isaac estava oferecendo aos que acreditavam nas teorias informações novas vindas "de dentro de Hollywood".
Ele começou a postar vídeos no aplicativo Periscope - monólogos transmitidos ao vivo, onde aparece dizendo coisas como "a gente não deveria ter uma Ordem Mundial onde crianças são estupradas e até assassinadas. É nojento, doentio".
Ao mesmo tempo, um novo movimento estava se formando a partir das cinzas do Pizzagate - o QAnon. Ele girava em torno da crença de que o presidente Trump tinha um plano mestre secreto para prender e executar a gangue de pedófilos do Partido Democrata e de Hollywood. E Isaac estava se tornando uma das principais vozes do QAnon.
Sua paranoia crescia. Uma noite em Los Angeles ele ficou com tanto medo de estar sendo seguido que pediu a um grupo de policiais para que o prendessem, mas eles riram dele e se negaram.
"Ele tava paranoico e fora da realidade", contou Ross. "Fui visitá-lo lá em Silverlake onde ele morava. E ele me pediu para deixar o celular no carro."
As transmissões dele no Periscope foram ficando mais radicais. Ele acusava astros de Hollywood de serem pedófilos, sem nenhuma prova.
Ele dizia que muita gente o procurava para passar informações sobre pessoas famosas.
Aos poucos, foi se tornando um líder intelectual do QAnon na internet. Tanto que a comunidade QAnon começou a postar vídeos de fãs de Isaac Kappy no YouTube.
E no que viria a ser sua última transmissão pelo Periscope, ele diz: "Essa aqui é minha última transmissão? Sim, provavelmente vai ser...Tô passando uma vibração de pânico para vocês. Não entrem em pânico, tá bem? Não fique tão focado nos monstros que estão por aí pois você mesmo acaba se tornando um deles."
"Por que, caras, uma vez que descobri sobre o pizzagate, dediquei milhares de horas a isso, mas sabe o que aconteceu? Fiquei tão focado com as exteriorizações do mal que não encontrei o mal interno. Talvez eu volte mais tarde. Amo vocês. Se cuidem. OK?"
Três dias depois, Isaac saiu para visitar seus pais em Albuquerque. "Ele saiu no Dia das Mães, para vir aqui me dar um abraço", contou Wendy. "No caminho até aqui, ele morreu, ele caiu de uma ponte e morreu."
As 7h20 da manhã de 13 de maio de 2019, a câmera do painel de um carro que passava registrou Isaac sentado de costas em uma ponte em Flagstaff, Arizona - no meio do caminho entre Los Angeles e Albuquerque.
"A gente acreditava que ele tava ali pegando a luz da manhã. Ele estava voltado para o leste. Para a gente, parecia que ele estava em um lugar bem profundo e meditativo", relatou a mãe dele.
"E, dois homens jovens veem ele e imediatamente acham que ele está indo se matar então aceleram sua caminhonete até ele. Ele não vê eles chegando. E quando ele se vira, a caminhonete tá ali com a porta bem aberta e um homem tentando agarrá-lo - salvá-lo, eu acho que eles tinham boa intenção, e ele caiu...caiu de costas da ponte."
Wendy disse que enfrentou vários episódios traumáticos após a morte do filho. "Provavelmente a coisa mais sórdida que aconteceu foi que algumas pessoas conseguiram fotos do cadáver do Isaac e as postaram na internet. Tentei removê-las e o YouTube nem me respondeu."
'Avalanche de insanidade'
Mas não é aqui que a sua história termina. Porque 18 meses depois, um advogado bastante respeitado chamado Lin Wood começou a tuitar com grande urgência que tinha informações de que Isaac tinha sido assassinado.
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Lin Wood havia construído uma sólida reputação como advogado especializado em difamação desde a década de 1990. Em 2019, ele ganhou grande destaque ao processar vários meios de comunicação que tinham acusado um aluno de escola de Covington, Kentucky, de ofender um indígena americano no Memorial Lincoln, em Washington.
O aluno, Nick Sandmann, fazia parte de um grupo que usava bonés com o lema trumpista "Make America Great Again" (Faça os EUA serem novamente grandes, em tradução livre) e que aparecia em um vídeo viral que ganhou grande destaque nos noticiários do mundo inteiro.
Mais tarde, entretanto, apareceram outros vídeos que puseram em dúvida a narrativa inicial da mídia, de que o aluno teria ofendido o veterano indígena.
Wood moveu um processo de difamação representando esse estudante e conseguiu um acordo generoso com vários veículos de mídia - no que se torno uma das grandes causas célebres do mundo trumpista.
E aos poucos, o famoso advogado começou a despontar como uma das principais vozes do QAnon.
"Eles me acusaram de ser um teórico da conspiração do QAnon, por quê? Eles estão tentando me atacar porque não conseguem atacar 'Q', porque 'Q' é a verdade, é sobre as crianças pelo amor de Deus... Os políticos, os Clintons, os Obamas, os Bidens, os Bushes, eles estão envolvidos em tráfico sexual infantil. É hora de contar a verdade para os Estados Unidos", discursou ele em uma convenção em Tulsa, Oklahoma.
Ouvido no podcast Things Fell Apart, o jornalista John Ziegler, que escrevera vários artigos sobre Wood - e declarou ter sido grande admirador do advogado -, diz que foi "difícil ver um figura dessa estatura desmoronar publicamente de uma maneira tão épica".
"Eu pensava, que diabos aconteceu com Lin Wood? Foi uma avalanche de insanidade."
Obcecado pelo QAnon, Wood tuitou que Isaac Kappy poderia ter mudado o curso da história se não tivesse sido "assassinado". Segundo Wood, hackers tinham passado um vídeo para Isaac que mostra o juiz-chefe da Suprema Corte estuprando e matando uma criança. Isaac estava prestes a entregar "de maneira heróica" essa gravação ao presidente Trump, mas foi "assassinado antes de conseguir".
'Às vezes, é preciso um pouco de loucura'
Algumas semanas antes desses tuítes, Wood começara a trabalhar como um dos advogados externos contratados pelo presidente Trump para tentar reverter o resultado da eleição de 2020.
Jonathan Swan, repórter de política no site de notícias Axios, que pesquisou a fundo a relação de Trump com os advogados externos, conta no podcast que estes foram contratados quando "os advogados oficiais do presidente disseram que ele tinha 0% chance de reverter a eleição".
Entre os dois advogados externos mais ilustres estavam Lin Wood e Sydney Powell, que, segundo Swan, "ofereciam soluções insanas".
"Lin Wood estava estava pedindo, publicamente, a execução do vice-presidente, Mike Pence."
Mas será que Trump dava crédito a ideias extremas como essa? Swan dá um exemplo que ilustra o que se passava na cabeça do presidente derrotado nas urnas quando ele ouvia as teorias malucas de advogados externos como Lin Wood e Sydney Powell:
"Sydney Powell ligou um dia. Trump coloca o aparelho no mudo e ela está lá reclamando e esbravejando sobre como, sabe, isso é uma conspiração internacional e que tudo se resume às urnas eletrônicas. E Trump está tipo zombando dela, rindo, dizendo 'é bem louca, né?'. Ele diz isso para alguém que está na sala com ele. E então ele abre o microfone e diz, 'então, o que você vai fazer, Sydney?'... Atiçando ela e tudo mais. 'Às vezes, você precisa de um pouco de loucura', ele diz, literalmente."
E uma semana depois de Lin Wood ter tuitado que Isaac Kappy havia sido assassinado, veio a famigerada invasão do Capitólio, da qual participaram vários seguidores do QAnon.
Em um email à produção do Things Fell Apart, Lin Wood afirma que qualquer tentativa de ligar seus tuítes ao 6 de janeiro é "baboseira equivocada".
Jon Ronson, autor de Os homens que encaravam cabras; O teste do psicopata e Humilhado - Como a era da internet mudou o julgamento público, encerra o episódio do podcast dizendo que "ao espalhar a mentira de que Isaac tinha sido assassinado, Lin Wood jogou mais lenha na fogueira acesa por eleitores que acreditavam que as eleições tinham sido surrupiadas por um grupo do mal".
"O presidente Trump permitiu que esse caos desestabilizante continuasse porque servia a seus interesses, porque 'às vezes, você precisa de um pouco de loucura'. E foi assim que Isaac Kappy se tornou um peão em uma guerra cultural onde a nova grande arma era a destruição da realidade, reverberando desde os lugares mais altos da vida americana - e atiçando uma multidão a invadir o Capitólio."
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-63046428
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