Com uma escrita enraizada na vida real e trabalhada com contornos de ficção, a francesa Annie Ernaux ganhou o Nobel de Literatura e levará para casa o prêmio de 10 milhões de coroas suecas (pouco mais de US$ 4,6 milhões). Ela foi descrita pela Academia Sueca, responsável pelo prêmio, como autora de "coragem" e "precisão clínica" na maneira como costura literatura e memória pessoal. Aos 82 anos, Ernaux é o 16º nome da literatura francesa e a primeira mulher a ganhar a honraria. O prêmio coloca novamente a França na lista de ganhadores depois de ter laureado Patrick Modiano, em 2014.
O ingresso de Ernaux na literatura se deu em 1974, com Les armoires (Os armários), mas foi com o quarto livro, O lugar (1983), que ela passou a ser conhecida como uma voz feminista que buscava na própria biografia o material literário para romances cuja classificação oscila entre autoficção e ficção. A própria Ernaux negava escrever autobiografias, embora admitisse ir buscar no cotidiano e na realidade um substrato considerado pouco relevante literariamente para colocá-lo lado a lado com os grandes temas da literatura, como o tempo e a memória.
Militante da extrema esquerda, a escritora sempre deixou claro seu interesse pela luta de classes e pelas grandes questões sociais, temáticas que perpassam alguns de seus 20 romances. Para ela, que é professora de Literatura da Universidade de Cergy-Pontoise (Paris), o objeto genuinamente poético ou literário não existe. O que existe é "um desejo de abalar as hierarquias literárias e sociais ao escrever de maneira idêntica sobre objetos considerados indignos da literatura como, por exemplo, os supermercados, o RER (o trem metropolitano de Paris), e outros mais nobres, como os mecanismos da memória, a sensação do tempo", como explicou em uma entrevista em 2003.
Nessa esteira de pensamento, a autora faz uso da autobiografia como instrumento para falar de sensações e memórias comuns a todos os leitores, em uma escrita seca e direta, na qual há pouco espaço para o juízo de valor e para construções romanescas. São narrativas como Os anos, publicada em 2008, no qual a autora revisita 60 anos de sua própria história a partir de fotografias e avisa, na primeira página, como se quisesse desconcertar o leitor: "Sim. Seremos esquecidos. É a vida, nada podemos fazer". O ponto de vista autobiográfico serve para contar a história de toda uma geração pós-guerra marcada pelo existencialismo e pela libertação sexual. Ou como O acontecimento, que acompanha o périplo de uma jovem professora para realizar um aborto ilegal. Ou ainda como A vergonha, cuja abertura é tão desconcertante quanto a de Os anos: "Meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho, no começo da tarde". Os três livros foram publicados no Brasil pela editora Fósforo.
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Infância
Filha de comerciantes de Yvetot, um vilarejo na Normandia, Annie Ernaux cresceu no café mantido pelos pais e estudou letras antes de se tornar professora de francês, nos anos 1970. Segundo a própria autora, em entrevista a jornais franceses, a vivência no café permitiu o contato com os mais variados tipos de linguagens e situações sociais e tornou-se, mais tarde, uma fonte para a narrativa. O crítico Dominique Viard, autor do ensaio Annie Ernaux: o tempo e a memória, descreve a autora como "atenta tanto às grandes problemáticas sociais — diferenças de classe, distinção sociocultural, reivindicações femininas… — quanto às categorias da arte ou do pensamento que recentemente subiram ao palco — questões da memória e do cotidiano, do legado e da filiação".
Ao receber a notícia do Nobel, Annie Ernaux falou sobre a responsabilidade em depoimento à televisão sueca SCT. "Considero que é uma grande honra e, para mim, ao mesmo tempo, uma grande responsabilidade, uma responsabilidade que me dão ao me entregar o prêmio Nobel. É receber a responsabilidade de testemunhar (...) uma forma de justiça em relação ao mundo", disse. A autora é a primeira mulher francesa a ganhar o Nobel e se junta a uma lista de 15 compatriotas que inclui nomes como Albert Camus e Jean-Paul Sartre.
Além da literatura, Ernaux, que tem como grande referência literária Simone de Beauvoir, fez incursões no cinema. Este ano, ela apresentou Les années super 8 na Quinzena dos Realizadores, no Festival de Cannes. O filme consiste em uma sequência de gravações caseiras realizadas pelo ex-marido da autora entre 1972 e 1981. Assumidamente de esquerda, ela foi uma das grandes apoiadoras de Jean-Luc Mélanchon, candidato da extrema-esquerda francesa pelo partido France Insoumise, nas últimas eleições. Após o Nobel, o atual presidente Emmanuel Macron disse que o prêmio exalta "a voz da liberdade das mulheres e dos esquecidos do século". Macron afirma, ainda, que Ernaux "escreve, há 50 anos, o romance da memória coletiva e íntima do nosso país".
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