Guerra no Leste Europeu

Quatro regiões da Ucrânia ocupadas pelos russos anunciam referendo de anexação

Quatro regiões da Ucrânia ocupadas pelas forças de Moscou anunciam consultas populares entre 23 e 27 de setembro. Otan vê escalada do conflito. Ocidente condena manobra do Kremlin e EUA acusam "farsa"

Oito anos depois de a Rússia incorporar a Península da Crimeia, separatistas pró-Kremlin acenam com a fragmentação do território da Ucrânia, ao anunciarem referendos para a anexação de quatro áreas controladas pelas forças de Moscou: Donetsk e Luhansk, no Donbass (leste), Kherson (sul) e Zaporizhzhia (sudeste). As duas primeiras regiões pretendem realizar a consulta popular entre os dias 23 e 27. O governo do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, prometeu "liquidar" a "ameaça russa" e assegurou que os referendos não terão efeito sobre a contraofensiva para expulsar os soldados russos. A comunidade internacional condenou os planos das autoridades nomeadas pelo presidente russo, Vladimir Putin. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) alertou que a medida representa uma "escalada adicional" do conflito.

Sem justificativa, Putin adiou para hoje um pronunciamento à nação que faria na noite de ontem. As dificuldades de ganhos militares na Ucrânia abastecem especulações de que o líder do Kremlin pretenda lançar mão de uma convocação em massa de reservistas. A Duma de Estado, Câmara Baixa do Parlamento russo, aprovou emendas à lei sobre o serviço militar e endureceu as penas por deserção, desobediência e recusa ao alistamento. Quem violar a legislação poderá pegar até 15 anos de prisão.

O chanceler russo, Serguei Lavrov, disse à tevê estatal Rossiya-1 que as votações permitirão aos territórios decidirem o próprio futuro. "Eles querem ser os mestres de seu destino", declarou. Número dois do Conselho de Segurança da Rússia, o ex-presidente Dmitri Medvedev pediu que os referendos em Luhansk e Donetsk ocorram "o mais rápido possível" e disse que os mecanismos "são de grande importância (...) para restaurar a justiça histórica".

"Somos Ucrânia. Jamais seremos ocupados", afirmou ao Correio Oleksandr Honcharenko, prefeito de Kramatorsk, em Donetsk. "Nossa cidade tem sido alvo do terrorismo russo pelos últimos sete meses, e foi palco de referendos ilegais em 2014. Kramatorsk faz parte da Ucrânia. Assim como as demais regiões, além da Crimeia."

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Reação

Os EUA classificaram os referendos como uma "farsa" e advertiram que jamais reconhecerão os novos territórios. Conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, Jake Sullivan acusou Moscou de "violação direta da soberania ucraniana". "A Rússia se apressa para realizar esses referendos em resposta aos ganhos da Ucrânia no campo de batalha e para preparar medidas de mobilização (militar)." O presidente Joe Biden deverá usar a tribuna da 77ª Assembleia Geral da ONU, hoje, para criticar a guerra. O chanceler alemão, Olaf Scholz, ressaltou que esses "referendos fictícios" não são "aceitáveis".

Em discurso na ONU, o presidente da França, Emmanuel Macron, culpou a Rússia pelo "retorno ao imperialismo". "O que testemunhamos desde 24 de fevereiro é um retorno ao imperialismo e das colônias. A França rejeita isso e trabalhará persistentemente pela paz", declarou.

Peter Zalmayev, diretor da ONG Eurasia Democracy Initiative (em Kiev), vê "um gesto desesperado de Putin". "As repúblicas fantoches de Donetsk e Luhanks agem de acordo com a vontade do Kremlin. Ninguém perguntou aos moradores se querem viver na Ucrânia ou na Rússia. O referendo carece de legitimidade. Ninguém reconhecerá os resultados", afirmou à reportagem.

Olexiy Haran — professor de política comparativa da Universidade Nacional de Kiev-Mohyla — concorda que a consulta "não terá força legal". "A Rússia não tem como impedir a liberação desses territórios. Por isso, Putin quer utilizar essa medida como uma chantagem adicional. Isso mostra que a Rússia é um Estado agressor, que tenta capturar partes da Ucrânia", admitiu ao Correio. "Os chamados referendos serão uma completa farsa, pois ninguém dará respaldo a eles."

"Vi corpos espalhados pelas ruas"

Arquivo pessoal - Nataly Suhova, professora em Izyum, na Ucrânia

"Para nós, a guerra começou em 3 de março. Os aviões russos despejaram bombas sobre prédios no centro de Izyum. Depois disso, minha cidade passou a ser alvejada todos os dias. Ficamos sem comida e sem medicamentos. A última vez que pudemos comprar alimentos foi em 24 de fevereiro. Sem estoque, o comércio fechou. Izyum foi isolada. A população ficou sem eletricidade e internet. Era impossível conseguir dinheiro.

Vi corpos pelas ruas. Estavam em todos os lugares: nas praças, nas estradas... Algo horroroso. Enfrentamos a fome. O que podíamos fazer? Dividimos a comida. Minha amiga e o marido se mudaram para minha casa, pois não tinham o que comer. Reparti com eles. Cada família fez o mesmo. Com os bombardeios, as pessoas passaram a viver nos porões.  

Em 5 de março, o sistema de aquecimento parou de funcionar, em meio a 15 graus abaixo de zero. Sem água, tivemos de recorrer ao Rio Siverskiy Donets. Dezoito dias depos, os russos chegaram ao bairro onde eu morava. Eu vi os tanques. Fiquei apavorada. Eles construíram postos de controle a cada 100m, e isso incluía jardins de infância e escolas. Ninguém podia entrar nem sair de Izyum. Vimos um homem lançar corpos de mulheres e de crianças no rio."

Nataly Suhova, professora, 45 anos. Escapou de Izyum em 27 de junho. Mora em Kharkiv, a 120km

Eu acho...

Arquivo pessoal - Oleksandr Honcharenko, prefeito de Kramatorsk, leste da Ucrânia

"Esta é uma tentativa da Rússia de submeter os teritórios ocupados. Trata-se de uma estratégia para justificar a possível guerra oficial contra a Ucrânia, por meio da proteção a essas regiões."

Oleksandr Honcharenko, prefeito de Kramatorsk, na região de Donetsk (leste)