Literatura

Mara Bergamaschi estreia em Portugal dando voz às mulheres

Escritora, que tem dois filhos brasilienses, lançará sua mais nova obra, "Gineceu", na Feira do Livro de Lisboa no sábado, 10 de setembro. O livro reúne monólogos em que elas falam de suas vidas de forma sensível, mas sem romantismo

Correspondente em Lisboa — A mineira Mara Bergamaschi, 58 anos, faz sua estreia internacional na literatura falando de mulheres. No próximo sábado,10 de setembro, ela lançará, na Feira do Livro de Lisboa, sua mais nova obra: Gineceu, monólogos cujos originais estavam guardados desde 2015, mas que ganharam vida na capital portuguesa, onde a escritora está morando. “Meu livro busca dar voz às mulheres, de diferentes idades. Elas falam de suas experiências com suas vozes próprias, com seu discurso sensível sim, mas com uma narrativa que está fora do romantismo que sempre se espera delas, ou do emocionalismo que se permite às mulheres, em seus papeis tradicionais”, diz.

Para a autora, que morou 15 anos em Brasília e é mãe de dois brasilienses, as mulheres de Gineceu contam e refletem sobre experiências que viveram, muitas delas corriqueiras, de uma forma muito própria. “Quando terminei de escrever, pensei que talvez os textos pudessem contribuir, como tantos outros, de outras escritoras, pensadoras e ativistas, a construir uma escuta das mulheres. E a incentivar, pela identidade, a fala”, afirma. No entender dela, um livro não é só de quem escreve, mas, sobretudo, de quem lê. “É a experiência subjetiva do outro que recebe e reconstrói a mensagem”, acrescenta.

Divulgação - capa livro Gineceu

A maior motivação para escrever Gineceu, segundo Mara, foi a percepção, ao chegar à maturidade, de que, “por mais que se fale hoje de feminismo, as questões femininas, a forma como as mulheres passam pela vida, e, sobretudo, a sua linguagem, continuam à margem, em um segundo plano, sem espaço real na sociedade dominante”. Ela vai além: “Até as vivências mais simples e óbvias, por exemplo, as determinadas pela biologia, transcorrem de forma quase clandestina. São mesmo desconhecidas, não são parte do diálogo social. É como se o mundo das mulheres continuasse ainda hoje submerso, como uma Atlântida perdida, misteriosa e mitificada”.

Na avaliação da escritora, ainda é muito comum ouvir a frase “Ninguém entende as mulheres”. E indaga: “Por que será que se repete esse senso comum? Não seria por que, digamos, a ‘lógica feminina’ sempre foi obliterada na sociedade onde o mando é masculino?”. São questionamentos mais do que pertinentes num momento em que autoridades exacerbam no machismo e na misoginia. Mara destaca que a publicação ganha mais peso com o prefácio escrito pela psicanalista portuguesa Maria Belo. “Com sua bagagem intelectual e sensibilidade, ela expandiu para campos que me surpreenderam em sua interpretação das quatro personagens (de Gineceu)”, frisa.

Mara, que tem longa carreira no jornalismo brasileiro, lembra que as mulheres são, no geral, as maiores consumidoras de obras literárias — de cada 10 livros comprados no Brasil, elas respondem por seis. Ela chama a atenção, também, para o público jovem que tem ampliado a leitura, graças ao maior acesso às universidades. É preciso, porém, avançar na melhoria da educação e que o governo brasileiro dê mais apoio à cultura, como ocorre nos países mais avançados. Veja, a seguir, os principais trechos da entrevista que a escritora concedeu ao Correio.

O que esse novo livro representa para a senhora?

Representa, primeiramente, uma continuidade na escrita literária. Já publiquei dois livros — um, de contos, e um romance — e, logo em seguida, escrevi esses quatro monólogos, que estão prontos desde 2015, 2016, mas que, por uma série de circunstâncias pessoais, ficaram engavetados. Sempre tentei conjugar o jornalismo, do qual nunca me desliguei, com a vontade de escrever ficção, que é algo ainda mais exigente, pois demanda mais tempo, dedicação e impõe um exercício solitário para se construir uma ou várias histórias. Exige, também, a busca de um estilo próprio, que nada tem a ver com os manuais de redação; muito pelo contrário, é preciso se despir da padronização, do didatismo e de tantas regras que são ok para o texto jornalístico, mas não necessariamente para a escrita literária. Ainda que veja grandes vantagens no treinamento para a observação dos detalhes, a escuta atenta e a concisão que o jornalismo proporciona aos repórteres, que, no fundo, são contadores de histórias. Então, diria que a primeira coisa é essa: o meu reencontro com a literatura.

Como surgiu a ideia de escrevê-lo? Inspirou-se em fatos da sua vida?

Quando eu comparo o processo de produção de Gineceu com, por exemplo, o de O Primeiro Dia da Segunda Morte, o meu romance — que me custou quase três anos de pesquisa de época, leituras infindáveis, viagens e longa rotina de escrita —, sinto que esse livro já estava dentro de mim. Ele saiu de uma vez, foi um fluxo só, principalmente o primeiro e o terceiro monólogos. Nada é fácil em se tratando de ficção, mas esse livro me surpreendeu pela sua inteireza, nasceu rapidamente, se posso dizer assim, levando em conta que espelham três décadas. Só que, estranhamente, depois de escrito, ficou anos guardado. A gente nunca sabe muito bem o caminho das coisas, não é? Como é um livro sobre mulheres, e, em parte, sobre mulheres que estão narrando algo mesmo que não sejam escritoras, sim, há fatos, de memórias de viagens a acontecimentos, que empresto às minhas personagens.

Qual foi sua maior motivação para escrever Gineceu?

Foi me dar conta, ao chegar à maturidade, que, por mais que se fale hoje de feminismo, as questões femininas, a forma como as mulheres passam pela vida, e, sobretudo, a sua linguagem, continuam à margem, em um segundo plano, sem espaço real na sociedade dominante. E até as vivências mais simples e óbvias, por exemplo, as determinadas pela biologia, transcorrem de forma quase clandestina. São mesmo desconhecidas, não são parte do diálogo social. É como se o mundo das mulheres continuasse ainda hoje submerso, como uma Atlântida perdida, misteriosa e mitificada. Ainda se ouve muito aquela frase: ninguém entende as mulheres. Por que será que se repete esse senso comum? Não seria por que a, digamos, “lógica feminina” sempre foi obliterada na sociedade onde o mando é masculino?

A senhora fala, em sua obra, de mulheres de diferentes idades...

Achei que não seria demais deixar as mulheres, de diferentes idades, falarem de suas experiências com suas vozes próprias, com seu discurso sensível sim, mas uma narrativa que está fora do romantismo que sempre se espera delas, ou do emocionalismo que se permite às mulheres, em seus papeis tradicionais. São mulheres que vão contar e refletir sobre experiências que viveram, muitas delas corriqueiras até, de uma forma muito própria. Quando terminei de escrever, pensei que talvez os textos pudessem contribuir, como tantos outros, de outras escritoras, pensadoras e ativistas, a construir uma escuta das mulheres. E a incentivar, pela identidade, a fala. Já aprendi também que um livro não é só de quem escreve, mas, sobretudo, de quem lê. É a experiência subjetiva do outro que recebe e reconstrói a mensagem. O prefácio que, generosamente, a psicanalista portuguesa Maria Belo escreveu para Gineceu mostra isso; com sua bagagem intelectual e sensibilidade, ela expandiu para campos que me surpreenderam em sua interpretação das quatro personagens. É um bônus e tanto para o leitor o texto dela. Várias vezes já me surpreendi com comentários de leitores sobre meus livros anteriores. Porque, muitas vezes, não havia pensado, conscientemente, quando escrevi, em nada daquilo que foi percebido, associado ou sentido pelo leitor(a). Acho isso fantástico.

Como vê a cultura hoje no Brasil? Há estímulos para o surgimento de novos autores?

Infelizmente, foram aprofundadas no Brasil a desvalorização e a falta de recompensa, inclusive financeira, para os produtores de cultura. Eu me pergunto até quando gerações de talentosos músicos, compositores, cantores, atores, bailarinos, artistas plásticos e gráficos, fotógrafos, cineastas, escritores, poetas terão de tirar leite de pedra para sobreviver. Nunca houve orçamento digno para a Cultura, e isso piorou muito. Claro que há exceções, há Secretarias de Cultura atuantes em nível estadual e municipal, há fundações privadas que também fomentam essas atividades. Mas estamos muito longe do que se vê nos países democráticos desenvolvidos, onde há incentivos do Estado, há apoios de entidades, há espaços para a liberdade de expressão e diversidade artística, há, enfim, todo um sistema que tem prazer em formar e exibir novos talentos, porque assim se renova a identidade, a força, a criatividade e vivacidade de um povo. E os brasileiros têm tudo isso, e, mesmo com toda a adversidade, conseguem ter sua cultura admirada.

Infelizmente, por conta desse descaso, o país está assistindo a uma fuga de cérebros...

Em todas as áreas do conhecimento está havendo fuga de cérebros. Todo dia vemos um dos nossos jovens premiados lá fora — e ainda bem que esse reconhecimento está acontecendo. É claro que o sucesso retumbante no mercado consumidor não pode ser a única referência para se valorizar um produto cultural. Em relação aos leitores, especificamente, lamento muito, por exemplo, o fim ou a diminuição dos cadernos e mesmo de blogs literários em alguns dos grandes jornais brasileiros. Isso apesar de constantes notícias de sucesso no faturamento do mercado editorial nas bienais e feiras de livros. Por outro lado, hoje precisaria haver um programa educacional capaz de incentivar a leitura e formar leitores jovens em tempos de predominância da internet: é necessário que a escola saiba como conjugar essas ferramentas contemporâneas. Mas, a despeito de tudo isso, vejo que há gente jovem lendo e escrevendo e publicando de forma autônoma, criando novos nichos, inclusive nas mídias sociais. Mas é urgente o Brasil parar de menosprezar a cultura; é uma área que deveria ser enaltecida e incentivada, porque, além de gerar emprego e renda, tem o poder de unir as pessoas, pela reflexão, pela expansão do conhecimento, pelo bem-estar e pela alegria.

Qual a sua expectativa em relação aos leitores? Mudou muito o perfil deles?

Bem, Gineceu é um livro de leitura fluente para todos, mas, especialmente, para o público feminino. E, de acordo com pesquisas, as mulheres são as que mais se dedicam à leitura. Do total de 88,2 milhões de leitores brasileiros, elas representam uma parcela de 57%, enquanto os homens são 43%. As mulheres também leem mais, segundo as pesquisas. Meu livro será lançado em Portugal, porque estou aqui agora, mas o e-book estará disponível no Brasil antes do Natal. Sei que as editoras identificam hoje um perfil de mulheres jovens em busca de ficção, fantasia, e homens jovens em busca de não ficção. Então, está havendo alguma renovação do público leitor. Não podemos esquecer que houve aumento do acesso às universidades, e mais educação e mais leitura têm tudo a ver. Mas viver de vender livros é algo muito, muito distante para a imensa maioria dos escritores brasileiros.

O que representa para a senhora fazer esse lançamento em Portugal?

É uma grande expectativa, na verdade é uma surpresa para mim mesma, porque nunca planejei isso. Então, faz parte da descoberta de estar em outro país, um lugar onde há a grande comodidade de ouvir e falar a língua natal. Mesmo com todas as diferenças que existem entre o português de Portugal e o do Brasil, há, sem dúvida, uma vantagem incrível nisso — mesmo que não proporcione o conforto que o brasileiro que chega aqui espera, porque as diferenças culturais e de mentalidade, mais do que as de vocabulário ou semântica, existem e não são pequenas. Aliás, estou tentando entender e aprender sobre essas diferenças, fazendo o exercício de não julgar, mas sim de me colocar no lugar do outro, porque é com empatia que se aprende. Recomendo muito um autor que faz isso de forma muito lúcida e envolvente, que é o Eduardo Lourenço, de quem estou lendo agora "Do Brasil, Fascínio e Miragem". O fato é que o exercício da escrita atravessa toda a minha vida profissional, então, é isso que eu sei fazer de melhor, em qualquer lugar que esteja. Além de colaborar com a imprensa brasileira a partir de Lisboa e voltar à universidade aqui, lembrei que Gineceu era uma coisa que eu tinha pronta, esquecida na gaveta. Reli tudo, fiz uma última edição, que considerei satisfatória, e submeti o texto ao julgamento crítico de amigas antes de procurar editora. Enfim, era o único ponto de partida que eu tinha nessas novas terras, porque, realmente, não planejei minha vinda, deveu-se a questões familiares meio urgentes. Foi isso. Então, não sei o que vai acontecer, mas espero ser lida em Portugal e no Brasil, claro.

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