Bate-boca, tensão e um protesto da oposição marcaram a sessão extraordinária da Câmara dos Deputados, convocada pela coalizão peronista e kirchnerista Frente de Todos (FdT) para rejeitar o ataque sofrido pela vice-presidente Cristina Fernández de Kirchner. Os congressistas aprovaram uma resolução em que expressam seu "enérgico repúdio à tentativa de magnicídio". "Manifestamos nossa absoluta solidariedade com a senhora vice-presidenta e sua família. Exigimos o rápido e completo esclarecimento, e a condenação dos responsáveis por esse fato lamentável, o qual mancha a vida em democracia", afirma o texto. "Exortamos toda a dirigência e toda a população a buscarem todos os caminhos que conduzam à paz social."
Professor de ciência política da Universidad de Buenos Aires (UBA), Miguel De Luca disse ao Correio que considerou positivo o fato de os blocos majoritários da Câmara dos Deputados terem condenado o atentado. "As forças da oposição votaram pelo repúdio à tentativa de magnicídio e somente se abstiveram os integrantes da Frente da Esquerda e dos Trabalhadores (FIT), de orientação trostkista", explicou. Ele acredita que o bloco do PRO — partido do ex-presidente Mauricio Macri — decidiu abandonar o plenário por dois fatores. "O primeiro deles para evitar a exibição de diferenças internas ante a situação. O segundo para não promoverem maiores repercussões sobre fato, de forma que outros temas ocupem a a genda política nos próximos dias", enumerou.
Ainda segundo De Luca, dentro do peronismo o repúdio ao ataque frustrado contra Cristina foi "unânime e imediata". "Nenhum grupo interno da Frente de Todos (governista) mostrou diferenças no repúdio. Ao contrário, na oposição ocorreram diferenças em relação ao tema. A FIT se absteve da votação, o PRO votou a favor, mas se retirou do recinto no momento do debate, enquanto que a (UCR) União Civil Radical nem sequer participou da discussão." O professor nega que a democracia esteja em risco no país e lembra que não existem atores políticos capazes de questioná-la. "No entanto, a crise econômica é muito grave e, neste aspecto, existem diferenças enormes sobre como superá-la. Não vejo uma união em torno de um plano econômico, e muito menos a um ano das eleições presidenciais", concluiu De Luca.
Também professora da UBA e integrante da Rede de Cientistas Políticos de Buenos Aires, Mara Pegoraro explicou ao Correio que o protesto de parte da oposição precisa ser analisado sob um prisma específico. "A política argentina está marcada por divisões não apenas entre kirchnerismo e antikirchnerismo, mas também entre a coalizão governista Juntos por el Cámbio ('Juntos pela Mudança') e o partido PRO. A ideia de permanecer na sessão implicava moderar a posição que supostamente deveria encarnar o PRO, como a ala mais dura e extrema do Juntos", avaliou.
Para ela, o que ocorreu na Câmara demonstra a indefinição dentro da bancada opositora. "Ela não se definiu se vai posicionar-se como uma ala moderada ou uma ala de falcões extremos. Ao sair da sessão, a oposição enviou um sinal aos congressistas mais duros do PRO que entendem que qualquer gesto de moderação ou qualquer ponte com o governo seria um ato de rendição", disse Pegoraro.
A especialista destaca que a maioria dos dirigentes políticos argentinos condenaram o atentado. "No entanto, vozes dentro da oposição não emitiram um repúdio enérgico", acrescentou Pegoraro, ao explicar que o arco político representado dentro da Câmara é muito vasto e diverso, e cada congressista precisa levar em conta o cálculo eleitoral. Ela lamentou o fato de haver uma crença de que, quanto mais radicalização, mais votos.
HIPERFOTO - O que diz a resolução
A resolução 4562-D-22, aprovada pela Câmara dos Deputados da Argentina, afirma que a instituição "expressa seu enérgico repúdio à tentativa de magnicídio contra a vice-presidente e por duas vezes presidente da Nação, doutora Cristina Fernández de Kirchner". "Além disso, manifestamos nossa absoluta solidariedade com a senhora vice-presidenta e sua família. Exigimos o rápido e completo esclarecimento, e a condenação dos responsáveis por esse fato lamentável, o qual mancha a vida em democracia", afirma o texto. "Exortamos toda a dirigência e toda a população a buscarem todos os caminhos que conduzam à paz social."
Duas perguntas para...
Jose Luís Espert,
deputado nacional pelo partido Avanza Libertad
e doutor em economia
Qual sua posição sobre a decretação do feriado nacional por parte do presidente e da sessão especial da Câmara?
Repudio, de forma retumbante, o atentado do qual foi alvo a vice-presidente da nação. Temos exigido, publicamente, a mais profunda, séria e profissional investigação por parte da polícia e por parte da segurança, para que se esclareçam os fatos. Damos graças a Deus que o ato não tenha sido concluído. Mas, sem dúvida, desde 22 de agosto, quando o promotor federal Diego Luciani acusou a vice-presidente de formar parte de uma associação ilícita e de malversação de recurso públicos, começou um uso político dessa acusação. O kirchnerismo saiu dizendo que se tratava de uma perseguição política. Após o atentado, ocorrido na frente da residência da vice, o kirchnerismo começou a falar em violência política e discurso de ódio. Em um ato partidário, praticamente, decidiu, por decreto do Executivo, declarar um feriado para que as pessoas manifestassem repúdio ao atentado. Praticamente parecia uma ordem do Exército. Foi uma montagem política e para firmar a posição de Cristina como candidata a não sei o quê em 2023.
Mas o atentado contra Cristina não configura violência política?
Por aqui, não existe violência política. A violência política foi o que a Argentina sofreu na década de 1970, quando o país se converteu num banho de sangue. Naquela época, organizações matavam pessoas que não pensavam igual. O discurso de ódio está tipificado no capítulo 13, inciso 5 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O que está ocorrendo na Argentina não configura, de maneira nenhuma, discurso de ódio. São divergências políticas muito fortes. O kirchnerismo transforma todo o processo judicial de Cristina em atos políticos, quando deveriam ser apenas policiais e judiciais, nada mais. (RC)
Rápidas
Isolado e "confuso"
De acordo com o jornal La Nación, Fernando Andrés Sabag Montiel, 35 anos, autor do atentado contra Cristina, está trancafiado, sozinho, numa cela da Superintendência de Investigações Federais da Polícia Federal Argentina, no bairro de Palermo (Buenos Aires). Ele é monitorado por câmeras e por dois agentes. Uma fonte que viu Montiel disse que ele está "em choque" e "confuso". O advogado de Cristina, Gregorio Dalbón, pedirá que Fernando seja acusado de tentativa de feminicídio com agravante de traição. A polícia quer saber se ele teve a ajuda de cúmplices.
Evidências nas mãos
Ainda segundo o La Nación, uma foto do perfil do Instagram de Fernando serve como evidência de autoria do atentado contra Cristina. Na imagem, aparecem os dorsos das mãos do agressor. O direito traz a Cruz de Ferro, símbolo das Forças Armadas da Alemanha e ícone do regime nazista. O esquerdo estampa o Martelo de Thor, uma das armas da mitologia viking. As tatuagens estão exibidas nas filmagens que mostram o homem apontando a pistola em direção à cabeça de Cristina Kirchner.