Ucrânia

Regiões da Ucrânia ocupadas por tropas votam para anexação à Rússia

Ocupação russa inicia consultas populares em Donetsk e Luhansk, no leste, e em Zaporizhzhia e Kherson, no sul. Biden criticou "farsa" e ameaçou resposta "rápida e severa" dos EUA contra Moscou. G7 avisa que jamais reconhecerá os resultados

Rodrigo Craveiro
postado em 24/09/2022 06:00
 (crédito: Alexander Nemenov/AFP)
(crédito: Alexander Nemenov/AFP)

Aconteceu no sul da Ucrânia, de acordo com um jornalista do país. "Minha família acabou de ser forçada a votar sob a mira de uma arma em um 'referendo' fantasioso. Eles vêm à sua casa, você tem que escolher a opção para ser anexado à Rússia, enquanto homens armados o observam", relatou. Até a próxima terça-feira, as autoridades leais às forças de ocupação russa em Donetsk e em Luhansk (leste) e em Zaporizhzhia e Kherson (no sul) realizarão consultas populares para decidir sobre a anexação desses territórios à Rússia. 

O presidente norte-americano, Joe Biden, alertou que os Estados Unidos "jamais reconhecerão o território ucraniano como algo que não seja parte da Ucrânia". Também classificou os referendos como uma "farsa" e "um falso pretexto para tentar anexar partes da Ucrânia à força, uma violação flagrante do direito internacional". E avisou: "Nós trabalharemos com nossos aliados e parceiros para impor custos econômicos adicionais rápidos e severos à Rússia". O ucraniano Volodymyr Zelensky instou o mundo a condenar o que chamou de "pseudoreferendos". 

No primeiro dia das consultas, vídeos divulgados pelas redes sociais mostram soldados russos batendo de porta em porta para buscar os cidadãos ucranianos em casa. Em outras imagens, os militares acompanham equipes com o material de votação. "Esperamos que, após o referendo, parem de nos bombardear e tenhamos paz e ordem", declarou à agência France-Presse Vladimir Shutov, da região de Lugansk e que foi votar na representação de Donetsk em Moscou.

Os líderes do G7 — grupo das sete maiores economias do mundo (EUA, Alemanha, França, Reino Unido, Canadá e Japão) — afirmou: "Nunca reconheceremos esses referendos, que parecem ser um passo rumo à anexação, e nunca reconheceremos essa suposta anexação se ela acontecer". A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) repudiou, "nos mais fortes termos possíveis", os chamados referendos para anexar à Rússia regiões ucranianas parcialmente controladas pelo Exército russo. "Nenhuma aquisição territorial resultante da ameaça ou do uso da força deveria ser reconhecida como legal. Os aliados não reconhecem e jamais reconhecerão a anexação ilegal e ilegítima da Crimeia pela Rússia, advertiu a aliança ocidental, que denunciou uma escalada a mais na guerra ilegal. 

Sob mira

Professor de política comparativa da Universidade Nacional de Kiev-Mohyla, Olexiy Haran disse ao Correio que os "pseudoreferendos" ocorrem sob a mira de armas russas e não têm consequência legal. "Trata-se de uma paródia. As pessoas votam em casa, nas ruas, por meio da internet. Não há registro nem comissão eleitoral. Algumas usam o passaporte russo", criticou. Para o especialista, ao realizar a consulta popular, Putin dá um tiro no próprio pé. "A partir de agora, a Rússia se reconhece como um país agressor, que deseja anexar o território ucraniano. Antes, Moscou negava seu controle total sobre as chamadas 'repúblicas fantoches'. As anexações abrem caminho para processar legalmente a Rússia pelo direito internacional", comentou.

Haran acusou Putin de "cinismo" ao usar a chantagem nuclear. "Ele quer declarar Luhansk, Donetsk, Zaporizhzhia e Kherson como partes da Rússia, a fim de que essas regiões não sejam atacadas pelas forças da Ucrânia, sob o risco de o Kremlin lançar mão de armas atômicas táticas. No entanto, caso esse arsenal seja utilizado, a contraofensiva ucraniana não se deterá", avaliou o professor, que visitou as trincheiras e conversou com soldados. 

Anton Suslov — analista da Escola de Análise Política (naUKMA), em Kiev — lembrou à reportagem que, em sociedades democráticas, referendos deveriam pressupor um processo democrático e liberdade de escolha. "Esses 'referendos' nos territórios ocupados são apenas um clichê de propaganda. As administrações da ocupação declaram que os resultados retratarão a opinião de todos os cidadãos de regiões respectivas. Isso não é verdade. Centenas de milhares de pessoas que não apoiam as ambições russas são forçadas a fugir", disse. Ele aposta que a Rússia usará o resultado para legitimar seu status naquelas áreas e justificar atividades militares adicionais. "No primeiro dia de 'referendo', não houve espaço para a livre escolha. Ao menos um soldado armado visitou os eleitores em suas casas. Não existe escolha livre sob uma arma."

Investigação

Também ontem, a comissão de inquérito da Organização das Nações Unidas (ONU) informou que "crimes de guerra" foram cometidos no país desde 24 de fevereiro, início da invasão russa. Eik Mose, presidente do órgão, apontou bombardeios russos de áreas civis, numerosas execuções, torturas e maus-tratos e violência sexual. Os casos de estupro envolvem vítimas entre 4 e 82 anos. Os investigadores visitaram 27 cidades e interrogaram 150 pessoas que teriam sofrido violência. Em Izyum (nordeste), a exumação de 447 corpos em uma vala comum revelou "sinais de tortura" em pelo menos 30 cadáveres. Alguns tiveram os genitais amputados. 

A mobilização de 300 mil reservistas anunciada pelo presidente Vladimir Putin esbarra no medo da morte no front. Muitos russos têm fugido para as ex-repúblicas soviéticas, por não exigirem visto, e para a Finlândia, que limitou "significativamente" a entrada de cidadãos da Rússia em seu território. 

Gabrielius Landsbergis, ministro das Relações Exteriores da Lituânia, avisou pelo Twitter que seu país "não concederá asilo àqueles que simplesmente fogem da responsabilidade". "Os russos devem ficar e lutar. Contra Putin", afirmou. 

Alguns jovens russos ameaçam recorrer a ações desesperadas para escaparem do alistamento militar. "Eu quebrarei meu braço, minha perna, irei para a prisão, qualquer coisa para evitar essa coisa toda", disse à emissora britânica BBC um morador de Kaliningrado. Na quarta-feira passada, horas depois do discurso de Putin, a ferramenta de buscas Google registrou um aumento significativo, na Rússia, da consulta ao termo "Como quebrar o braço".

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As marcas da guerra

O Ministério da Defesa da Ucrânia tuitou, ontem, duas imagens do soldado Mykhailo Dianov. Uma das fotos foi feita antes de o militar ser capturado pelas forças russas (E). O outro registro data de depois de sua libertação (D). "O soldado ucraniano Mykhailo Dianov está entre os afortunados: ao contrário de alguns de seus colegas prisioneiros de guerra, ele sobreviveu ao cativeiro russo. Isso é como a Rússia 'adere' às Convenções de Genebra. Isso é como a Rússia continua o legado vergonhoso dos nazistas", afirma o texto no perfil oficial do Twitter.

Mikhailo Dianonov, soldado da Ucrânia, antes de ser capturado
Mikhailo Dianonov, soldado da Ucrânia, antes de ser capturado (foto: Defense of Ukraine/Twitter)

Mikhailo Dianonov, soldado da Ucrânia, depois de ser capturado
Mikhailo Dianonov, soldado da Ucrânia, depois de ser capturado (foto: Fotos: Ministério da Defesa da Ucrânia)

 

 

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