Imagine uma escultura composta de quatro blocos de aço que, em conjunto, pesavam nada menos que 38 toneladas. Numa dessas histórias incríveis, a estrutura desapareceu e ninguém sabe até hoje onde foi parar.
Isso aconteceu na Espanha, nos anos 1990.
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Equal Parallel/Guernica-Bengasi foi uma obra criada pelo influente escultor americano Richard Serra.
Como o próprio nome indica, o artista traçou um paralelo entre dois eventos históricos: o bombardeio da cidade basca de Guernica em 1937, por aviões alemães, e o ataque contra a cidade líbia de Benghazi em 1986, pela Força Aérea dos Estados Unidos.
Era uma escultura enorme, que foi exibida pela primeira vez em 1986 na inauguração do Centro de Arte Reina Sofía em Madrid, que no ano seguinte adquiriu a peça por mais de 215 mil euros.
No entanto, a obra não chegou a fazer parte da exibição permanente do museu.
A escultura passou quatro anos guardada num armazém e foi novamente exposta ao público em 1990.
Depois, ela foi alojada num depósito industrial na cidade de Arganda del Rey, na Espanha. Passado algum tempo, a empresa que geria o local faliu.
Essa é a última informação conhecida sobre o paradeiro da escultura.
O "sumiço" permaneceu desconhecido do público até 2006, quando o jornal espanhol ABC descobriu o escândalo.
Mas até hoje ninguém sabe o que aconteceu de verdade. A investigação para encontrar as causas do desaparecimento foi encerrada em 2009 e só deixou hipóteses que nunca foram comprovadas.
Alguns especulam que a peça foi roubada por um milionário. Outros acreditam que ela foi derretida para reaproveitar o aço.
Fascinado por essa história quase impossível, o escritor espanhol Juan Tallón dedicou seu mais recente romance, que recebeu o título de Obra-Prima, para reconstruir e desmontar essa trama.
Nas próprias palavras do escritor, o trabalho se tornou um verdadeiro exercício de paciência.
A BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC para a América Latina, conversou com Tallón durante o Hay Festival Querétaro, que acontece esta semana no México.
BBC News Mundo - Você disse que levou muito tempo para escrever o livro e que um dos problemas foi justamente a natureza espetacular do evento, que de alguma forma conspirou contra a própria história...
Juan Tallón - Sim, essa foi uma das dificuldades. Como administrar um mistério tão avassalador que é exposto ao leitor logo nas primeiras páginas?
Algo absolutamente pesado e monumental desaparece, e trata-se de um fato tão surpreendente que é difícil assimilá-lo com o pensamento lógico.
Desde 2006, quando se verificou que a obra não estava em lugar nenhum, ninguém — nem a polícia, nem o tribunal — conseguiu determinar quem a fez desaparecer.
Também não há pistas de como a peça desapareceu ou quando tudo ocorreu. Até porque isso pode ter acontecido num grande espaço de tempo.
Então, ao colocar essa "carta" virada para cima logo no início do livro — uma coisa que é impossível de desaparecer, desapareceu — como você consegue sustentar essa história por mais 100, 200 ou 300 páginas?
Como posso ter certeza que o mistério não decai? Até porque, no momento em que o mistério termina, o romance desmorona.
Também era complexo escolher qual seria a voz dessa história. Eu coletei informações de muitos ângulos diferentes por vários anos. E não havia um narrador, uma pessoa para contar tudo. Isso me parecia inviável.
BBC News Mundo - Ao final, são 73 vozes que contam a história. Uma delas é a sua própria, que, entre outras coisas, fala sobre a dificuldade de acesso ao processo judicial.
Tallón - Criei essa dificuldade para mim: a obsessão de encontrar o caso legal para ver os passos da polícia, os depoimentos que eles coletaram e as linhas de investigação que foram seguidas.
Porque, sem isso, eu teria que inventar demais, ou arriscar na criação de uma história pouco convincente.
Então comecei uma perseguição teimosa e doentia , procurando algo que a administração da Justiça me negou.
Eu não conseguia entender por que eles não me deixaram ler um caso que não deixou acusados ??ou vítimas fora do museu, e que foi arquivado em 2009.
Fiquei paralisado por uma década e me dediquei a escrever outros romances.
Até que houve um momento em que vi como essa história poderia ser contada e como seria possível administrar o peso insuportável do mistério. E comecei a escrever a partir daí.
Nesse processo, meu último recurso foi aceito. Então pude ir ao tribunal de Arganda del Rey para ler as 175 páginas da investigação.
BBC News Mundo - E o que você encontrou?
Tallón - Confesso que a leitura do arquivo não mudou o rumo do livro, embora tenha permitido ajustar certos pontos da narrativa aos fatos e dar-lhes mais credibilidade.
O romance não é uma crônica escrita sob os cânones do jornalismo, mas tem essa aspiração.
Eu queria ser o mais rigoroso possível onde isso fosse possível. Onde não fosse, haveria então espaço para um escritor de fantasia.
A documentação também me permitiu criar um novo narrador que contaria mais sobre a vida da escultura. Até porque o romance é apenas isso: a vida de uma escultura que, embora não possa falar, é um personagem vivo.
E, claro, quem a viu, quem a procurou, quem a perdeu, quem a guardou... Todos esses podem falar por ela.
Eu fiz o que venho fazendo há muito tempo, que é brincar de empurrar os limites dos gêneros literários, dividi-los e misturá-los.
Eu incluo personagens reais e conhecidos em minhas histórias, e também invento testemunhos, mas sempre gerando a suspeita se o que é dito é verdade ou não — até chegar ao ponto em que o leitor não se importa mais se o que aquele personagem está dizendo é real ou inventado.
BBC News Mundo - Embora a escultura seja a protagonista da história, há outro personagem interessante que é a democracia espanhola e sua inexperiência naqueles anos — que é o que, de certa forma, permite esse desaparecimento. Em que contexto histórico a obra some?
Tallón - Naquela época, a Espanha vinha de uma longa ditadura que terminou em 1975. Então, temos que aprender de novo a ser um Estado democrático, que se abre para o mundo e permite que o mundo se abra para nós.
Na década de 1980, não havia promoção da arte contemporânea no país, e o Museu Reina Sofía é o primeiro grande passo nesse caminho: a ideia era transformar a Espanha em um lugar onde você pode descobrir o que os artistas internacionais estão fazendo.
Mas essa ambição artística, muito bem sucedida, não é acompanhada — digamos — pela ambição organizacional. Nessa esfera, há voluntarismo, amadorismo e falta de profissionalismo.
E assim o campo é semeado para que as anomalias comecem a ocorrer. Até que um dia acontece o desaparecimento mais incrível.
A empresa que trouxe a escultura para a cidade de Arganda del Rey foi uma das líderes na área de transferência, custódia e exibição de obras de arte, não só na Espanha, mas na Europa inteira.
Ela foi tão importante que, em 1936, no início da Guerra Civil Espanhola, se encarregou de transferir as obras dos grandes mestres do Museu do Prado, primeiro para Valência e depois para a Suíça. Em 1939, a empresa as trouxe de volta para a Espanha com as bombas da Segunda Guerra Mundial caindo atrás delas.
Mas o museu não expõs mais a peça de Serra, que acabaria se tornando um dos escultores mais relevantes da arte contemporânea.
É aquela preguiça da administração para com o que se administra. Não há responsabilidade com o que é nosso, porque este é um museu nacional e tudo o que uma instituição dessas tem é patrimônio de todos.
A escultura desapareceu, transcendeu o público, e o que aconteceu? Nada. Ninguém assumiu a responsabilidade.
BBC News Brasil - Há uma frase no livro que diz: "Se este trabalho não aparecer, este país irá para o inferno". Mas, ao contrário, foi encontrada uma solução quase tão absurda quanto o problema: pedir para o autor fazer uma cópia e, desta vez, expô-la permanentemente...
Tallón - Mas repare que mesmo esse pedido absurdo e bizarro consegue ser, ao mesmo tempo, ousado.
E isso é perfeitamente compatível com a arte contemporânea, onde o importante muitas vezes não é a obra como você a vê, mas o coração da ideia. A força está na ideia, não na execução.
Então, se a primeira peça desaparece ou é destruída, a ideia continua ali e ganha força novamente na réplica, que é exatamente a mesma, dotada do mesmo batimento cardíaco.
E o artista vem e diz: "Declaro que a segunda obra, exatamente igual à primeira que desapareceu, é a original", porque está revestida das características que a tornam uma obra de arte.
Existe a ideia e a palavra do artista, que é como o mágico: "Eu te declaro real e original, mesmo que você seja a segunda".
É algo absurdo? Sim. É uma ideia maluca? Sim. Mas não podemos negar que seja ousada e provocativa.
Além disso, há algo único nessa escultura, que pouquíssimas obras de arte têm, que é a lenda.
Não se pode aspirar algo a mais.
Porque esta escultura exposta no Reina Sofía é uma peça que falta.
E por trás dela está o fantasma da primeira que, enquanto não aparecer, terá uma história incrível.
Imagine se a primeira escultura aparece? A lenda morre. Porque as lendas não têm fim, elas não têm nada para questioná-las.
Porém, se de repente soubermos o que aconteceu com a escultura, poderíamos sentir a satisfação dos finais próximos, mas acho que acabaríamos um pouco tristes porque o que desapareceria — e isso certamente não pode ser recuperado — é o mistério.
BBC News Mundo - Você dedicou grande parte do livro à montagem da escultura, à fundição das peças, ao transporte da obra...
Tallón - Richard Serra é um artista que está muito longe do que podemos entender como um tipo solitário, que trabalha isolado do resto do mundo.
Ele não pode trabalhar assim, não pode ser o artista que é se não tiver 800 pessoas colaborando com ele.
Ele tem uma ideia que, no momento em que se torna uma peça artística, precisa agregar cada vez mais pessoas ao processo: cientistas da computação, engenheiros e outras pessoas altamente qualificadas que acham que o projeto é plausível do ponto de vista da física.
Ele é um coartista de seu próprio trabalho.
Há a necessidade de especialistas qualificados porque as obras são tão enormes, tão extraordinariamente grandes e pesadas, que precisam ser movidas primeiro por mar — porque ele trabalha com uma siderúrgica na Alemanha — e depois por terra, quando você chega no país onde a peça será exposta.
E a isto segue-se talvez a parte mais difícil: colocar a obra de arte dentro do museu.
Vale lembrar que o Reina Sofía, em 1986, teve de demolir parte do prédio para botar a peça de Richard Serra numa galeria. E quando a réplica foi feita e reintroduzida, foi necessário derrubar as paredes novamente.
BBC News Mundo - Num texto de blog escrito por você há muito tempo, é possível ler sobre seu amor por lojas de ferragens e oficinas elétricas. Você até dizia que trocaria toda a formação filosófica e o conhecimento em linguagem por saber consertar uma motosserra. Parte do seu livro é inspirada nesse prazer de juntar peças e consertar coisas?
Tallón - Quando eu era pequeno, meu pai tinha uma motocicleta, uma Derbi Diablo. Quando ela estava estacionada, eu sentava na frente e olhava aquele motor, o que me fascinava.
E o que sempre me provocou foi a ideia de desmontar peça por peça e ver como algo inanimado conseguia se mover.
Agora me ocorre que, talvez, o que eu faço em Obra-Prima, nada mais é do que desmontar uma estrutura muito complexa que explica por que algo tão incrível aconteceu.
Vamos colocar o mistério, diante do leitor, em pequenos pedaços.
Isso é algo que estou improvisando no momento. O romance é uma resposta ao sonho de infância de desmontar coisas complexas para tentar entendê-las.
E não pretendo remontá-las depois, uma vez que a desmontagem é o verdadeiro mistério.
Trata-se, portanto, de entender até que ponto as coisas podem ser desmontadas, na busca de uma compreensão que vai além de entender exatamente como elas funcionam.
- Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-62786939
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