Dezenas de milhares de argentinos atenderam à convocação do presidente Alberto Fernández e tomaram as ruas de Buenos Aires para protestar contra o atentado sofrido na noite de quinta-feira pela vice, Cristina Fernández de Kirchner. No feriado nacional decretado pelo governo, em solidariedade à "Senhora", funcionários públicos, sindicalistas, artistas e ativistas se reuniram na Plaza de Mayo, em frente à Casa Rosada. "Fazemos um apelo à unidade nacional, mas não a qualquer preço: ódio, fora!", afirma o manifesto lido por Alejandra Darín, líder da Associação Argentina de Atores.
Mais do que um chamamento, foi um grito de socorro em um país polarizado e castigado pela crise socioeconômica. Apesar de repudiarem a tentativa de magnicídio, dirigentes da coalizão opositora Juntos Pela Mudança (centro-direita) acusaram o presidente de capitalizar politicamente sobre o crime.
Pouco depois das 21h de quinta-feira, Fernando Andrés Sabag Montiel, de 35 anos, nascido em São Paulo e radicado na Argentina desde os 6, apontou uma pistola para a cabeça de Cristina e disparou. A arma falhou. A ex-presidente chegava em casa, no bairro da Recoleta, e cumprimentava simpatizantes. O atentado expôs vários erros no aparato de segurança. Na noite de ontem, Montiel se recusou a ser interrogado pela juíza María Eugenia Capuchetti. Ele responderá por tentativa de homicídio qualificado.
Alberto Fernández se encontrou com representantes dos setores envolvidos na marcha e os convidou a "construírem um amplo consenso contra os discursos de ódio e de violência". A oposição denunciou "oportunismo político" do chefe de Estado. "O presidente está brincando com fogo: em vez de investigar um ato de gravidade, acusa a oposição e a imprensa, e decreta feriado para mobilizar militantes. Converte ato de violência em jogada política", criticou a deputada Patricia Bullrich, líder do PRO, partido do ex-presidente Mauricio Macri. Integrantes do governo participaram do protesto na Plaza de Mayo, como os ministros Sergio Massa (Economia) e Wado de Pedro (Interior). Hoje, o Congresso realizará sessão especial para repudiar o ataque contra Cristina.
Num gesto simbólico, Alberto visitou a vice e conversou com ela por 45 minutos. Pouco depois, Cristina deixou sua casa, mas não participou da manifestação. Mais cedo, ela recebeu um telefonema do papa Francisco, que expressou solidariedade "por este momento delicado" e disse orar para que "prevaleçam a harmonia social e o respeito aos valores democráticos".
De acordo com o jornal La Nación, a polícia tenta entender por que a pistola Bersa de calibre 32 não disparou, e não descarta que Montiel tenha se esquecido de colocar a bala na recâmara. A arma estava apta para uso, com cinco projéteis. Na casa do agressor, em San Martin, nos arredores de Buenos Aires, foram encontradas 100 munições. A pistola teria sido roubada de um amigo.
A análise das câmeras de segurança sugere que Montiel agiu sozinho. Os policiais procuram descobrir vínculos com grupos neonazistas. Para isso, esmiuçam os dados do celular do criminoso. Os investigadores estão intrigados com o fato de que o agressor foi capaz de se aproximar a poucos centímetros da vice-presidente, com a arma em punho.
Moderação
Diretor do Departamento de Direito Eleitoral e Político na Universidade Nacional de Rosário (a 300km de Buenos Aires), Oscar Blando disse crer que a tentativa de magnicídio contra Cristina será capaz de unir os argentinos em torno da moderação da retórica, de pacificar os ânimos e ajudar na convivência democrática. "Será necessário vermos como se comportarão os setores políticos, sociais e econômicos. Como pano de fundo, há um cenário de crise. Tudo dependerá de como os dirigentes buscarão moderar o clima e acenar com a pacificação", disse ao Correio.
O estudioso não descarta que governo e oposição tentem obter ganhos políticos. "Independentemente disso, o processo judicial contra Cristina continuará. A condenação da vice-presidente será utilizada pela oposição. Em caso de absolvição, a Justiça será responsabilizada pelo oficialismo e pela oposição", observou Blando. A promotoria federal pediu pena de 12 anos de prisão para Cristina por corrupção em obras públicas.
Miguel De Luca, professor de ciência política da Universidad de Buenos Aires (UBA), entende que, com os protestos de ontem, Alberto Fernández tentou distensionar o ambiente sociopolítico. "Ele buscou descomprimir uma situação muito nervosa, que se agravou ao longo da última semana", lembrou. "A decretação do feriado nacional teve dois objetivos: facilitar o comparecimento aos protestos e reduzir a tensão", disse.
O especialista destaca que, desde os anos 1990, a política argentina tem sido pacífica, sem registros de violência política. Em 23 de fevereiro de 1991, um ex-membro da Gendarmería Nacional disparou contra o então presidente Raul Alfonsín, mas as balas não saíram.
Micaela Hierro Dori, presidente da ONG Cultura Democrática (Buenos Aires), afirmou à reportagem que a primeira reação da sociedade argentina foi de "repúdio". "Foi uma rejeição generalizada à violência. Algumas pessoas reagem com descrença, em meio a hipóteses sobre uma possível encenação para vitimizar Cristina, acusada de liderar uma organização ilícita para desviar recursos do Estado."
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