Na noite de ontem, o mundo perdeu uma das derradeiras e mais importantes personalidades do século 20, um líder que promoveu a abertura da União Soviética (URSS), além de contribuir para derrubar a Cortina de Ferro e unir nações. Em 1990, recebeu o Prêmio Nobel da Paz por seu "papel de liderança pelas mudanças radicais nas relações entre Oriente e Ocidente". No ano seguinte, não pôde evitar a dissolução da URSS. "Hoje, após uma grave e prolongada doença, Mikhail Sergeyevich Gorbachev, morreu", afirmou, em nota, o Hospital Clínico Central (TSKB, na sigla russa), de Moscou. Aos 91 anos, o último presidente soviético será sepultado no cemitério Novo-Dyevitchiye, ao lado de sua mulher, Raisa, na capital da Rússia. O homem que lutou pelo fim da Guerra Fria se despediu da vida em meio ao confronto entre Rússia e Ucrânia, duas ex-repúblicas soviéticas.
O presidente russo, Vladimir Putin, expressou suas "profundas condolências pela morte de Mikhail Gorbachev". "Pela manhã, ele enviará um telegrama de condolências para a família e amigos (de Gorbachev)", anunciou Dmitry Peskov, porta-voz do Kremlin, no começo da madrugada de hoje, em Moscou.
Glasnost ("Transparência", em russo) e perestroika ("Reestruturação"). Os dois termos se confundem com o nome de Gorbachev, que deixou um legado ambivalente dentro da Rússia. Se conseguiu reformas democráticas e econômicas importantes, que abriram espaço para as liberdades de expressão e de imprensa, o ex-dirigente soviético foi responsabilizado por muitos russos pelo fim da superpotência. A União Soviética se desintegrou em 25 de dezembro de 1991. Em seu discurso de renúncia, no mesmo dia, Gorbachev disse ter supervisionado a viagem da URSS pelo "caminho da democracia" e lembrou que as reformas impostas durante os seis anos em que esteve no poder reorientaram a economia, abrindo-a ao mercado.
Em uma entrevista, ao falar sobre as reformas, Gorbachev confidenciou que teve como "estrelas orientadoras" a liberdade e a democracia. "Não houve derramamento de sangue. O povo deixaria, assim, de ser um rebanho liderado por um pastor. Os russos se tornaram cidadãos", comemorou.
"Gorbachev não recebeu o reconhecimento que merece pelo colapso pacífico da União Soviética. Quando soube que os líderes da Ucrânia, de Belarus e da Rússia estavam dissolvendo a União Soviética, pelas suas costas, na Floresta de Belavezha, em dezembro de 1991, ele não utilizou a violência para suprimi-los", afirmou ao Correio Yelena Biberman, professora do Skidmore College (em Nova York) e da Universidade de Harvard e especialista do instituto Atlantic Council.
Nascida na atual Belarus, então União Soviética, em 1982, ela passou a infância sob a liderança de Gorbachev. "Depois da dissolução da URSS, o líder russo, Boris Yeltsin, estava a caminho de um encontro com Gorbachev. Yeltsin teve tanto medo de ser assassinado que bebeu até o estupor, dentro do avião. Apesar de nervoso e frustrado, Gorbachev renunciou pacificamente. Seria impossível imaginar alguém como Vladimir Putin fazendo isso", comentou Yelena.
Para Angelo Segrillo, professor de história da Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os russos, Gorbachev "literalmente mudou o mundo". "Com a perestroika, ele não apenas reformou, internamente, a União Soviética, como também mudou a relação das duas grandes superpotências. O mundo era bipolar e de confrontação, dominado pelos EUA e pela URSS. Aos poucos, Gorbachev mudou isso com a perestroika, ao conseguir um ambiente mais colaborativo", explicou à reportagem.
Segrillo cita, como grande avanço político de Gorbachev, a possibilidade de abertura. "Os soviéticos puderam falar e discutir abertamente. No campo econômico, a URSS tinha aspectos positivos, principalmente no campo social, como uma menor desigualdade, moradias baratas, comida subsidiada, acesso gratuito à saúde. Isso se deteriorou muito, posteriormente. Por outro lado, a economia se tornou mais dinâmica, capitalista. Mas, certamente, Gorbachev é um dos líderes que capitaneou um processo que transformou o planeta."
O professor da USP reconhece que Gorbachev perdeu o controle, durante esse processo de abertura. "Ele até chegou a sofrer uma tentativa de golpe. Quando voltou ao poder, em 1991, tinha perdido muito da legitimidade, o que levou à dissolução da URSS. Mais ou menos dentro de suas limitações, Gorbachev tentou conduzir essa abertura de maneira democrática", disse Segrillo.
"A morte de Gorbachev representa o fim de uma era. Ele era o último grande líder político que protagonizou a velha ordem mundial, o período de enfrentamento entre os blocos socialista e capitalista, entre EUA e URSS", admitiu ao Correio Cesar Albuquerque, pesquisador e doutorando da USP. "Independentemente das críticas, Gorbachev teve um protagonismo central nos processos que levaram à dissolução da União Soviética, à transição da antiga economia socialista de volta à estrutura capitalista e, principalmente, ao encerramento do período da Guerra Fria", destacou o especialista, que defendeu a dissertação de mestrado sobre a evolução do pensamento econômico e político de Gorbachev ao longo da perestroika. O mesmo tema é abordado por Albuquerque na tese de doutorado, abarcando o antes, o durante e o depois da perestroika.
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Repercussão
O secretário-geral da ONU, António Guterres, classificou Gorbachev como "um estadista único que mudou o curso da história" e "fez mais do que qualquer outro indivíduo para alcançar um final pacífico da Guerra Fria". Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, destacou que ele foi "um líder digno de confiança e respeitado". "Ele desempenhou um papel fundamental para pôr fim à Guerra Fria e derrubar a Cortina de Ferro. Abriu o caminho para uma Europa livre. Esse é um legado do qual nunca nos esqueceremos", declarou.
O primeiro-ministro demissionário do Reino Unido, Boris Johnson, enalteceu "seu compromisso incansável com a abertura da sociedade soviética". Nos Estados Unidos, a Fundação e Instituto Ronald Reagan lamentou a perda de "um homem que, de adversário político do ex-presidente americano, tornou-se amigo". "Nossos pensamentos e orações vão para a família de Gorbachev e o povo da Rússia", afirmou, em nota.