Mulheres estão enfrentando ameaças e chantagens de uma multidão de estranhos anônimos depois que seus dados pessoais, fotos íntimas e vídeos foram compartilhados na plataforma de mídia social Reddit.
A BBC desmascarou o homem por trás de um dos grupos, graças a um isqueiro de segunda mão.
"5 libras (R$ 30) por seus nudes, me mande uma mensagem privada."
"Tenho alguns vídeos dela querendo negociar."
"O que vamos fazer com ela?"
Eu me senti nauseada enquanto percorria as imagens e comentários online.
Havia milhares de fotografias. Um fluxo aparentemente interminável de mulheres nuas ou seminuas. Por baixo, os homens estavam postando comentários cruéis sobre as mulheres, incluindo ameaças de estupro. Muito do que vi era explícito demais para compartilhar aqui.
Uma dica de uma amiga me trouxe até essas imagens. Uma de suas fotos foi retirada do Instagram e postada no Reddit. Não era um nude, mas estava acompanhada de linguagem sexual e degradante. Ela estava preocupada consigo mesma e com outras mulheres.
O que encontrei foi um mercado online. Centenas de perfis anônimos dedicados a compartilhamento, troca e venda de imagens explícitas — e tudo parecia ocorrer sem a permissão das mulheres retratadas.
Parecia uma nova evolução da chamada pornografia de vingança (ou revenge porn, em inglês), em que material sexual privado é publicado online sem consentimento, muitas vezes por ex-parceiros.
Não apenas essas imagens íntimas estavam sendo compartilhadas para um público de milhares de pessoas, mas os homens — escondidos por trás do anonimato — estavam se unindo para expor as identidades da vida real dessas mulheres, uma prática conhecida como doxxing.
Endereços, números de telefone e perfis de rede social estavam sendo trocados online — as mulheres eram alvo de comentários sexuais, ameaças e chantagens.
Parecia que eu tinha caído em um canto muito obscuro da internet, mas tudo isso estava acontecendo em uma grande plataforma de mídia social.
O Reddit se autodenomina "a primeira página da internet". Ele tem uma audiência de cerca de 50 milhões de usuários diários, permitindo que as pessoas criem e administrem fóruns, conhecidos como "subreddits", dedicados a todos os tipos de interesses. A maioria dos subreddits é inofensiva, mas o Reddit tem um histórico de hospedar conteúdo sexual controverso.
Em 2014, um enorme pacote de imagens privadas de celebridades foi compartilhado no site, e quatro anos depois, o Reddit fechou um grupo que estava usando a tecnologia "deepfake" — tipo de inteligência artificial — para sobrepor celebridades em vídeos pornográficos.
Respondendo a essas controvérsias, a empresa com sede nos EUA introduziu regras mais rígidas e reforçou sua proibição de postar ou ameaçar postar conteúdo íntimo ou sexualmente explícito de pessoas sem seu consentimento.
Eu queria entender como as fotos íntimas das mulheres ainda estavam sendo compartilhadas no Reddit e como isso afetava as vítimas.
Então, eu queria descobrir quem estava por trás disso.
Era nítido que a proibição do Reddit não estava funcionando. Encontramos dezenas de subreddits dedicados a compartilhar imagens íntimas de mulheres de todo o Reino Unido.
O primeiro que vi era focado em mulheres do sul da Ásia e tinha mais de 20 mil usuários, a maioria dos quais pareciam homens da mesma comunidade, com comentários em inglês, hindi, urdu e punjabi.
Algumas das mulheres eu reconheci porque tinham muitos seguidores nas redes sociais. Algumas eu até conhecia pessoalmente.
Foram mais de 15.000 imagens. Examinamos milhares delas e encontramos fotos sexualmente explícitas de 150 mulheres diferentes. Todas estavam sendo desumanizadas como objetos sexuais nos comentários. Eu tinha certeza de que nenhuma das mulheres teria consentido em aparecer neste fórum.
Algumas, como a foto que minha amiga descobriu de si mesma, eram imagens retiradas das redes sociais das mulheres e não eram explícitas. Mas essas imagens foram publicadas acompanhadas por comentários degradantes e, às vezes, pedidos para hackear telefones e computadores das vítimas em busca de nudes.
Uma mulher que contatamos diz que agora recebe mensagens de cunho sexual em suas redes sociais "todos os dias" depois que o grupo postou uma imagem dela, juntamente com ameaças de estupro.
Os homens no subreddit também estavam compartilhando e vendendo fotos das mulheres. Essas imagens pareciam selfies enviadas entre parceiros, não destinadas a serem publicadas.
Havia também vídeos — ainda mais explícitos — onde parecia que as mulheres haviam sido filmadas secretamente durante o sexo.
'Eu vou te encontrar'
Uma série de mensagens apresentava imagens de uma mulher nua fazendo sexo oral.
"Alguém tem algum vídeo desta [palavrão]?", um usuário anônimo perguntou, usando um nome depreciativo para ela.
"Eu tenho uma pasta inteira dela por 5 libras, me escreve", disse outro.
"Quais são as redes sociais dela?", perguntou um terceiro.
Ayesha (nome fictício) descobriu que vídeos dela estavam sendo compartilhados em um subreddit no ano passado. Ela acredita que foi filmada secretamente por um ex-parceiro.
Ela não apenas teve que lidar com a violação de sua confiança, mas também enfrentou uma onda de assédio e ameaças nas redes sociais quando seus dados pessoais foram postados no fórum.
"Se você não fizer sexo comigo, vou mandar para seus pais. Vou te encontrar... Se você não concordar em fazer sexo comigo, vou te estuprar." Os assediadores dela tentaram chantageá-la por mais imagens também.
"Sendo uma garota paquistanesa, não é certo em nossa comunidade que tenhamos relações sexuais antes do casamento ou algo assim - isso não é aceitável", diz ela.
Ayesha parou de socializar ou até mesmo de sair de casa e acabou tentando tirar a própria vida. Após sua tentativa de suicídio, ela teve que contar a seus pais o que havia acontecido. Sua mãe e seu pai entraram em depressão, ela diz.
"Eu me senti tão envergonhada de tudo o que estava acontecendo e por colocá-los nessa situação", diz ela.
Ayesha entrou em contato com o Reddit várias vezes. Em uma ocasião, um vídeo foi excluído quase imediatamente, mas levou quatro meses para remover outro. E não terminou aí. O conteúdo excluído já havia sido compartilhado em outros sites e acabou aparecendo no subreddit original um mês depois.
O subreddit que envergonhou e assediou Ayesha foi criado e moderado por um usuário chamado Zippomad — um nome de usuário que acabaria sendo a chave para localizá-lo.
Como moderador, Zippomad deveria garantir que seu grupo de discussão do subreddit seguisse as regras do Reddit. Mas ele fez o contrário.
Desde o primeiro rastreamento de seu subreddit, eu o vi criar novas versões do grupo três vezes — depois que cada versão anterior foi encerrada pelo Reddit devido a reclamações. Cada nova encarnação usava uma variação do mesmo nome, que inclui um insulto racial muito ofensivo para ser repetido. Cada um foi preenchido com o mesmo material — e cada um tinha milhares de usuários ativos.
O comércio de nudes se espalhou o suficiente para que especialistas em abuso online lhe dessem um nome: cultura de colecionador (collector culture, em ingês).
Clare McGlynn, professora de direito da Universidade de Durham que é especialista nesse tipo de abuso online, diz que "este não é um fenômeno apenas de pervertidos ou esquisitos ou outros excêntricos que estão fazendo isso. Há muitos deles, são dezenas de milhares de homens".
A troca de imagens ocorre em pequenos grupos de bate-papo privados em aplicativos de mensagens, bem como em sites onde dezenas de milhares de homens se reúnem, diz McGlynn.
Ela diz que muitos dos homens envolvidos ganham status nessas comunidades construindo grandes coleções de imagens obtidas ou publicadas de forma não consensual. Esse acúmulo obsessivo pode dificultar a eliminação, como Ayesha descobriu quando os vídeos excluídos foram simplesmente republicados de outras coleções.
Sete mulheres que tentaram remover suas imagens do Reddit disseram à BBC que não sentiam que a empresa estava fazendo o suficiente para ajudar. Quatro disseram que o material nunca foi removido pelo Reddit e algumas tiveram que esperar oito meses antes que o conteúdo fosse excluído.
O Reddit disse à BBC que removeu pouco mais de 88 mil imagens sexuais não consensuais no ano passado e diz que leva a questão "extremamente a sério".
A empresa diz que usa ferramentas automatizadas e tem uma equipe de funcionários para encontrar e remover imagens íntimas publicadas sem permissão. Acrescenta que toma medidas regularmente, incluindo o encerramento de fóruns.
"Sabemos que temos mais trabalho a fazer para prevenir, detectar e acionar esse conteúdo de forma ainda mais rápida e precisa, e estamos investindo agora em nossas equipes, ferramentas e processos para atingir esse objetivo", disse um porta-voz da empresa.
Assim como as empresas de tecnologia, a lei do Reino Unido tem dificuldade para proteger as mulheres de terem suas imagens privadas compartilhadas online.
Quando Georgie foi contatada por um estranho que contou que imagens explícitas dela estavam sendo compartilhadas na internet, ela foi à polícia. Ela sabia que apenas uma pessoa deveria ter tido acesso a essas imagens.
"Não consigo nem calcular quantas pessoas já viram essas imagens. E não há como impedir que mais pessoas as vejam. Neste momento, agora, as pessoas podem estar olhando para elas", diz ela.
Seu ex-parceiro mandou uma mensagem para ela para admitir ter compartilhado as imagens, mas disse a ela que "não queria me machucar ou me envergonhar".
Essa parte de sua confissão acabou sendo uma brecha legal. A legislação existente contra a pornografia de vingança em todo o Reino Unido exige provas de que a pessoa que compartilha fotos sem permissão está fazendo isso para causar sofrimento à vítima.
A Comissão de Direito, um órgão consultivo independente do governo, recomendou a remoção da exigência de provar a intenção de causar danos. Mas o Projeto de Lei de Segurança Online atualmente em andamento no Parlamento não inclui essa mudança.
Eu quis rastrear Zippomad, o usuário do Reddit que criou o fórum direcionado às mulheres do sul da Ásia — incluindo Ayesha. Ao examinar seu histórico de comentários no site, não havia nome real, endereço de e-mail ou fotos.
Apenas seu nome de usuário deu uma pista sobre quem ele era — ele colecionava isqueiros Zippo e tinha um à venda. Então, entrei em contato usando uma conta falsa e me ofereci para comprá-lo.
Ele concordou em marcar uma reunião e nosso repórter disfarçado finalmente ficou cara a cara com o homem que havia criado o fórum onde a privacidade de tantas mulheres havia sido violada.
Seu nome é Himesh Shingadia. Ele tem formação universitária e trabalha como gerente em uma grande empresa. Não era quem eu esperava encontrar.
Depois que o programa Panorama o contatou, Shingadia excluiu seu subreddit. Em uma declaração, ele afirma que o grupo pretendia "apreciar as mulheres do sul da Ásia". Devido ao grande número de usuários, ele diz que achou impossível moderar o fórum.
Ele diz que nunca compartilhou detalhes privados de ninguém ou trocou imagens, e afirma que ajudou a remover material sexualmente explícito quando solicitado por mulheres.
"Zippomad está profundamente envergonhado de suas ações, isso não reflete sua verdadeira personalidade", diz o comunicado.
O Reddit também removeu os outros grupos semelhantes que destacamos para a empresa.
Isso significa que quase mil mulheres finalmente tiveram suas imagens retiradas - mas isso é pouco após a dor da exposição indesejada.
As empresas de tecnologia e os legisladores precisarão fazer mudanças para evitar que mais mulheres sejam exploradas por esse comércio.
Como Georgie diz sobre o ex-parceiro que compartilhou suas imagens: "Não quero puni-lo. Quero que ele nunca mais faça isso".
E no Brasil?
O artigo 218C do código penal, introduzido em 2018, estabelece que oferecer, trocar, transmitir, vender distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio - inclusive pela internet - fotografias, vídeos ou outro registro audiovisual que contenha pornografia ou nudez sem o consentimento da vítima, assim como cena ou apologia de estupro ou de estupro de vulnerável ou cena de sexo, é crime.
Quem recebe, por exemplo, uma foto de nudez no WhatsApp e compartilha - mesmo sem ter sido o primeiro a expor a imagem - também é considerado infrator.
Como pena, a lei prevê a reclusão de um a cinco anos, se o fato não constitui crime mais grave. Caso o criminoso seja um ex-namorado(a) e a divulgação tenha fim de vingança ou humilhação, essa pena pode aumentar de um a dois terços.
Já se as imagens foram compartilhadas por um tutor, padrasto, madrasta, irmão, tio, empregador ou qualquer outro título que a justiça considere "de autoridade" sobre a vítima, a pena pode aumentar em 50%.
Leia nesta reportagem as recomendações de advogada sobre o que vítima deve fazer para denunciar.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-62630785
Sabia que a BBC está também no Telegram? Inscreva-se no canal.
Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!