Em conversa telefônica, os presidentes Vladimir Putin (Rússia) e Emmanuel Macron (França) avalizaram o envio de inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) à central nuclear de Zaporizhzhia, no centro-sul da Ucrânia. A usina atômica foi alvo de bombardeios, pelos quais Moscou e Kiev se acusam mutuamente. O Kremlin admite que a comitiva da AIEA terá a meta de “avaliar a situação real no terreno”. A Organização das Nações Unidas (ONU) advertiu sobre o risco de uma catástrofe nuclear, caso um dos reatores seja atingido. O secretário-geral António Guterres disse que qualquer dano à usina seria “suicídio” e instou o fim das atividades militares na área. Ele também pediu à Rússia que não desconecte a central da rede de energia elétrica ucraniana. “Obviamente, a eletricidade de Zaporizhzhia é energia elétrica ucraniana... Este princípio deve ser plenamente respeitado”, defendeu.
O próprio Putin reconheceu o perigo de um acidente nuclear, ao destacar que o Exército da Ucrânia bombardeia “sistematicamente” o território de Zaporizhzhia, ocupado pelas forças russas. O governo francês admitiu que Putin aceitou a passagem da missão de verificação pela Ucrânia, “respeitando-se a soberania ucraniana”. Imagens de satélite mostraram caminhões do Exército russo estacionados ao lado das turbinas de um dos reatores da usina.
Em entrevista ao Correio, John Erath — diretor de Política Sênior do Centro para Controle de Armas e Não Proliferação (em Washington) — disse esperar que os inspetores da AIEA sejam capazes de visitar o local e avaliar a situação de forma adequada. “Houve dificuldade em planejar uma visita porque a Rússia insistia em reconhecer o seu direito de controlar a área, que, legalmente, faz parte da Ucrânia. A usina nuclear se situa perto da linha entre a ocupação russa e a Ucrânia livre. Por isso, existe a possibilidade de combates na região enquanto as tropas russas permanecerem ali”, disse.
Segundo Erath, a proibição de acesso dos observadores internacionais impedia, até o momento, que o Ocidente tivesse uma visão clara sobre as condições em Zaporizhzhia. “Parece que os russos colocaram equipamentos militares dentro da central nuclear, sabendo que a Ucrania não atacaria as instalações, ante o risco de um desastre ambiental. É uma medida altamente irresponsável, pois as consequências da liberação de radiação seriam severas”, advertiu.
O especialista em não proliferação nuclear sublinhou que a Ucrânia não tem interesse em nenhuma manobra que precipite uma catástrofe radioativa. “A Rússia, por sua vez, busca ocupar porções do território ucraniano e forçar um colapso do governo democraticamente eleito da Ucrânia, que seria substituído por um regime sob influência de Moscou. O controle dos suprimentos de energia ajudaria o Kremlin nesse sentido”, disse Erath.
Ele não descarta que a Rússia utilize a possibilidade de um ataque da Ucrânia como pretexto para desconectar Zaporizhzhia da rede ucraniana, o que privaria o país de 20% de sua eletricidade. “O inverno está chegando. Milhares de civis poderiam morrer de fome ou congelados. Incapaz de atingir seus objetivos no campo de batalha, a Rússia pode transformar o inverno em arma”, acrescentou Erath.
Morador da cidade de Zaporizhzhia, a cerca de 100km da usina nuclear, o advogado Hryhorii Nemchenko mostra-se cético em relação à inspeção das instalações. “Eu não acredito que os funcionários da AIEA terão a oportunidade de conferir a situação real da central atômica. Mas, a ameaça continua, ainda que hoje não tenhamos visto sinais claros de detonação ou de bombardeio pesado da usina nuclear”, disse à reportagem. Nemchenko também considera possível que a Rússia tente desconectar o suprimento de certas regiões da Ucrânia, cujas consequências serão graves durante o inverno. De acordo com ele, forças russas se movem ativamente na área da usina nuclear. “As autoridades ucranianas estão preocupadas com a deterioração da situação em 24 de agosto, Dia da Independência da Ucrânia. A Rússia pode adotar ações inesperadas”, alertou Nemchenko.