O fim da atual guerra contra as drogas, o aceno à paz, o convite à deposição de armas em troca de benefícios jurídicos, a promessa de combate à desigualdade socioeconômica, e a disposição de encerrar todas as diferenças ideológicas na América Latina. O pronunciamento de posse de Gustavo Petro — um ex-integrante da guerrilha M-19 — foi marcado como o anúncio de um ponto de ruptura na história de uma nação de 49 milhões de destinos. "Em nossa história, colombianos e colombianas foram, tantas vezes, enviados à condenação do impossível, à falta de oportunidades, ao retumbante 'não'", disse.
Ele rendeu homenagem ao escritor colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), ao citar um trecho de sua obra Cem anos de solidão: "Tudo o que estava escrito neles era irrepetível desde sempre e por todo o sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra". "Quero dizer a todos os colombianos e a todas as colombianas que me escutam nesta Plaza Bolívar (...) que hoje começa nossa segunda oportunidade", acrescentou.
O primeiro presidente de esquerda da Colômbia anunciou que o esforço dos colombianos "valeu e valerá a pena". "É hora da mudança. Nosso futuro não está escrito. Somos os donos da caneta e podemos escrevê-lo juntos, em paz e em união", afirmou o mandatário de 62 anos, diante da espada do venezuelano Simón Bolívar, responsável por libertar países da América do Sul do jugo espanhol. "Hoje, começamos a trabalhar para que o impossível seja possível na Colômbia. Temos que terminar, de uma vez por todas, para sempre, com seis décadas de guerra. Cumpriremos com o acordo de paz", avisou.
Ele propôs que o fim da violência seja alcançado com mais democracia e uma maior participação da cidadania. "Convocamos (...) a todos os armados a depor suas armas nas nebulosas do passado. A aceitar benefícios jurídicos em troca da paz, em troca da não repetição definitiva da violência. (...) Para que a paz seja possível na Colômbia, precisamos dialogar muito. A paz implica que mudemos", comentou. Petro pediu uma mudança na política de combate às drogas na Colômbia. "É hora de uma nova convenção internacional que aceite que a guerra contra as drogas fracassou. (...) Que a guerra contra as drogas levou os Estados a cometerem crimes." Segundo ele, a paz será possível se a política antidrogas deixar de ser vista como uma guerra e passar a ser abordada como uma política de prevenção de consumo.
Alejandro Bohorquez-Keeney, professor de governo da Universidad Externado de Colombia (em Bogotá), explicou ao Correio que existe um distanciamento entre o que o presidente promete em discursos de posse e o que consegue fazer. "Governar esse país é algo muito complicado. Petro citou dois temas-chave: os grupos armados e as drogas. Ele terá o apoio de Joe Biden para acabar com a guerra antidrogas. Ao escolher esse assunto, Petro busca tranquilizar os nossos sócios norte-americanos", afirmou.
Em relação aos grupos armados, ele classifica a situação do Exército de Libertação Nacional (ELN) como pendente. "É uma guerrilha tremendamente doutrinária, não campesina, como foram as Farc. O ELN está muito mais apegado à ideologia. Para Petro, a aproximação a esse grupo será complicado", aposta Alejandro. "A criminalidade, no contexto de nossa posição geográfica e geopolítica, se impõe a Petro como algo obrigatório a ser tratado. Os grupos armados se financiam com o narcontráfico, especialmente com a cocaína."
Especialista em opinião pública com mestrado em gerência política, o cientista político Daniel Quiroga observou à reportagem que Petro resgatou o tom propositivo da agenda de governo. "Foi um discurso repleto de símbolos, com a paz no centro e com a reconciliação como o ato mais importante. Ele resgatou o chamado ao diálogo com todos os setores e a mudança que pretende dar à política antidrogas e ambiental", avaliou.
Por e-mail, Ernesto Samper, presidente da Colômbia entre 1994 e 1998, afirmou que o plano de governo de Petro poderá ser beneficiado pelo forte apoio no Congresso. "No momento, 70% dos grupos políticos representados no Congresso demonstraram apoio a Petro. Ele assinalou que sua linha vermelha, em matéria de ação ideológica, será o respeito à Constituição. As Forças Armadas colombianas expressaram seu respaldo ao novo chefe de Estado, obedecendo à longa tradição civilista e democrática. Em resumo, a governabilidade no primeiro ano está garantida."
Emoção
A cerimônia teve início às 15h10 (17h10 em Brasília), com a execução do Hino Nacional da Colômbia, enquanto um telão exibia imagens de diversas regiões do país, de manifestações culturais e das Forças Armadas. O presidente do Congresso da República da Colômbia, senador Roy Leonardo Barreras Montealegre, deu posse a Petro. "Juro a Deus e prometo ao povo cumprir fielmente a Constituição e as leis da Colômbia", declarou o novo líder. Às 15h20, María José Pizarro — filha de Carlos Pizarro, ex-líder da guerrilha M-19 assassinado em 1990 — foi convidada por Montealegre a colocar a faixa no novo chefe de Estado. A senadora não conteve as lágrimas. Depois das 21 salvas de canhão, Petro comandou o juramento da vice, Francia Márquez, selado com um abraço.
O líder do Congresso afirmou que a eleição do primeiro governo progressista de esquerda da nação representa uma ruptura, uma quebra da história. Um dos momentos mais solenes ocorreu pouco antes do discurso de Petro e após um recesso de 10 minutos na cerimônia. Quatro soldados, vestidos com uniforme de gala e cercados por vários seguranças, marcharam até a Plaza Bolívar carregando uma redoma de vidro que trazia a espada de Simón Bolívar.
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