Começou a vigorar ontem o Motu Proprio Ad charisma tuendum ("Para tutelar o carisma"), documento expedido pelo papa Francisco para reformar o Opus Dei, uma das organizações conservadoras mais influentes da Igreja Católica. O texto determina a transferência de competências do Opus Dei — a prelazia passa a "depender do Dicastério (ou ministério) do Clero". Todos os anos, e não mais quinquenalmente, a prelazia terá a obrigação de apresentar a esse órgão um relatório sobre a situação interna e o desenvolvimento do seu trabalho apostólico. Os prelados (autoridades eclesiásticas) do Opus Dei deixarão de receber a ordem episcopal.
Na teoria, Francisco reduz o poder a independência de uma organização vista por críticos e por ex-integrantes como seita secreta. Presente em mais de 60 países, o Opus Dei é formado por 90 mil membros, incluindo políticos e empresários, e mais de 2 mil sacerdotes, especialmente na Europa e na América Latina. A organização foi fundada em 1928 pelo padre espanhol Josemaría Escrivá de Balaguer, falecido em Roma, em 1975, aos 73 anos. Em 2002, Balaguer foi canonizado pelo papa João Paulo II. Duas décadas antes, Karol Wojtyla tinha elevado o Opus Dei ao status de "prelazia pessoal".
Manuel Sánchez, um dos assessores de imprensa do Opus Dei, tratou de minimizar o impacto do documento papal. "Alguns interpretaram as disposições da Santa Sé em termos de 'rebaixamento' ou 'perda de poder'. Não nos interessa esse tipo de dialética, pois para um católico não faz sentido o uso de categorias de poder mundanas", disse à agência France-Presse. "Acolhemos o que vem do Santo Padre, com o desejo de aprofundar o que é essencial", acrescentou.
Saiba Mais
"Controle permanente"
Dos 15 anos aos 33, a espanhola Carmen Charo Pérez, hoje com 65, fez parte do Opus Dei. Decidiu abandonar a organização católica depois de uma profunda depressão, em 1991. "Tive uma crise de vida e 'esquizofrenia'. O que eu vivia e pensava não coincidia em nada. O Opus Dei costuma buscar pessoas muito jovens e com conflitos familiares. Uma vez dentro, eles o anulam completamente. Não existe liberdade em nenhum nível", desabafou ao Correio, por telefone. Ontem, ela recebeu com alívio a notícia de que Francisco decidiu reformar o Opus Dei. "O pontífice resolveu colocar o Opus Dei onde sempre deveria estar. O Opus Dei queria controlar a Igreja. Seus membros creem ser a própria voz de Deus. O papa sempre deixou claro que os únicos representantes da prelatura são os sacerdotes, e que os fiéis devem atuar como colaboradores, sem nenhum compromisso."
Carmen acusou o Opus Dei de impor o medo aos seguidores. "É controle mental e permanente. Em jovens, isso é muito perigoso", contou. Ela lembra que 42 mulheres paraguaias e argentinas, procedentes de famílias carentes, entraram na Justiça contra o Vaticano. "O Opus Dei buscou essas mulheres e lhes prometeu formação e progresso profissional. O que receberam foi um tratamento de escravidão. Eram obrigadas a trabalhar de graça por horas, sem direito a vida social e a qualquer tipo de previdência. O mesmo ocorreu comigo. Por uma década, trabalhei para o Opus Dei sem contrato. Saí de mãos vazias e sem ajuda."
O Correio falou com o advogado das 42 mulheres sul-americanas citadas por Carmen. Também ex-integrante do Opus Dei, o argentino Sebastian Sal, 56, disse que a reforma da organização era necessária. "Francisco põe limites no Opus Dei, em parte por causa da denúncia apresentada por nós, em setembro de 2021. Está claro que o Opus Dei pretendia ser uma Igreja paralela. Com sua decisão, o papa afirma que o Opus Dei tem que respeitar as normas da Igreja e prestar contas aos bispos locais", disse o morador de Buenos Aires, por telefone. "Parece-me que o Opus Dei se afastou de sua 'mãe', e a Igreja coloca limites necessários. O que falta é um real pedido de perdão pelos abusos que cometeram e uma intenção real de reparar aquelas pessoas que deixaram suas vidas lá dentro e saíram sem nada, sem dinheiro e sem estudo."