Relato

'Como perdoei a mim mesma por matar minha amiga acidentalmente'

Por décadas, Lis Cashin se culpou duramente pela morte de sua amiga. Ela passou anos afetada pela tragédia e fingindo estar bem

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postado em 24/08/2022 08:30
 (crédito: BBC Ideas)
(crédito: BBC Ideas)

No dia da tragédia, Lis Cashin acordou animada. Era 1983, ela tinha apenas 13 anos e havia sido escolhida como arremessadora de dardo em uma competição escolar. Ela parecia muito capaz de conseguir uma medalha.

Mas aquela tarde mudou a sua vida para sempre.

"Andei até a rampa de largada, peguei o dardo, respirei fundo e joguei o mais forte que pude", conta.

No último momento da corrida, o dardo virou para a direita e seguiu em direção à sua amiga Sammy.

"Eu vi o dardo acertar bem na cabeça dela, logo acima do olho esquerdo. Ela tropeçou para a frente e havia muito sangue."

Cashin faz uma pausa no relato. Ela engole em seco enquanto se lembra.

"Caí de joelhos com a cabeça nas mãos. Não conseguia processar o que estava acontecendo."

Sammy morreu quatro dias depois, em razão da lesões causadas pelo acidente.

Por décadas, Lis Cashin se culpou duramente pela morte de sua amiga. Ela passou anos afetada pela tragédia e fingindo estar bem.

Como aprender a se perdoar depois de uma experiência assim?

Lis Cashin em uma foto da adolescência
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Lis Cashin tinha 13 anos quando ocorreu o acidente que mudou a sua vida

Caso midiático

O acidente virou notícia em todos os meios de comunicação. Enquanto isso, sua família tentou protegê-la de todo aquele barulho na mídia.

Mas Lis confessa que ninguém sabia realmente o que fazer. Então, acabou sentindo que só poderia superar isso sozinha.

Naquela época, Lis tinha um relacionamento complicado com o padrasto. No caminho para casa do funeral de Sammy, ele disse que o nome da vítima nunca mais seria mencionado em casa.

Então, Lis não recebeu ajuda profissional e não conseguiu falar sobre o impacto disso em casa.

Estresse pós-traumático

Lis desenvolveu estresse pós-traumático, embora só tenha sido diagnosticada anos depois.

O estresse pós-traumático é uma condição mental caracterizada pela lembrança de momentos passados ??tempestuosos, insônia e estresse emocional severo.

Além do choque imediato, Lis continuou se culpando por décadas, apesar de as investigações terem concluído que a morte de Sammy não foi culpa dela.

Por muito tempo, ela fingiu estar bem quando na realidade estava passando por uma intensa turbulência emocional.

A mudança

Lis começou sua terapia de trauma aos 47 anos. Aos poucos, começou a perceber que a morte de Sammy não era sua culpa.

Lis Cashin
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"Depois da terapia foi como tirar um peso dos meus ombros. No momento em que percebi que não tinha feito nada de errado, percebi também toda a dor e sofrimento que foram criados para mim", diz Lis.

"Nunca senti tanta dor dentro de uma sala como quando converso com as pessoas sobre autoperdão", diz Marina Cantacuzino, jornalista e fundadora do The Forgiveness Project (O projeto do perdão), uma instituição de caridade sediada no Reino Unido que usa histórias reais de vítimas e perpetradores de crimes e violência para ajudar as pessoas a explorar ideias sobre perdão e alternativas à vingança.

"É muito mais do que quando falo com as pessoas sobre perdoar os outros. O autoperdão nos corta no coração da nossa identidade", acrescenta Cantacuzino.

"As pessoas muitas vezes fazem jornadas de autodescoberta, e Cashin é um exemplo muito bom. Demorou décadas para se perdoar e ir ainda mais longe, porque ela percebeu que era uma criança, que foi um acidente, que havia adultos que deve ter assumido total responsabilidade pelo que aconteceu", explica a jornalista.

Marina Cantacuzino, fundadora do The Forgiveness Project.
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Empatia e compaixão: dois ingredientes fundamentais para praticar o autoperdão, diz a jornalista Marina Cantacuzino

Cashin diz que ela mesma criou esses pensamentos destrutivos sobre si mesma, que ela era má e que deveria ser punida. Foi assim por muitos anos.

"Quando descobri, meu coração se abriu, desenvolvi autocompaixão e precisei me perdoar por tudo que fiz comigo por tantos anos", descreve Cashin.

Pesquisas mostram que o autoperdão pode reduzir os sintomas de ansiedade e depressão. E também pode melhorar a saúde física.

O que você pode fazer se tiver dificuldade em perdoar a si mesmo?

Cantacuzino argumenta que a culpa e a vergonha atrapalham muito o autoperdão. É por isso que é muito importante aceitar quem somos e adotar uma perspectiva mais ampla da vida.

Ele dá o exemplo de quando se trata de uma pessoa viciada em drogas.

"Talvez você tenha causado muitos danos aos outros e a si mesmo. Você pode ampliar sua perspectiva e se perguntar por que isso aconteceu. Bem, porque é um vício, uma doença. Isso pode mudar a maneira como você se percebe e como sua vida segue adiante", diz Cantacuzino.

Segundo o jornalista, empatia e compaixão são ingredientes fundamentais para perdoar a si mesmo.

É possível conseguir isso explorando histórias semelhantes de outras pessoas. Então, algo fundamental é desenvolver a autoconsciência e se conhecer melhor.

Lis Cashin.
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"Agora minha missão a cada dia é praticar o amor e o autocuidado", diz Cashin

Segundo Cantacuzino, "se não nos conhecemos, muitas vezes nos enganamos e causamos grandes danos ao mundo".

"Agora minha missão a cada dia é praticar o amor e o autocuidado. Medito todos os dias. Saio para me exercitar ou aproveitar a natureza", diz Cashin, que agora afirma ter apoio de uma grande rede de amigos e familiares.

Também garante que procure ajuda profissional se precisar.

"Algumas pessoas dizem que o autoperdão é egoísta, mas é sobre fazer as pazes com as coisas que você fez e não pode mudar. Aceitar que você é um humano que pode falhar como o resto da raça humana", conclui Cantacuzino.

- Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62654309


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