Argentina

Cristina Kirchner reage a pedido de prisão e alega perseguição política

Acusada de corrupção, vice-presidente Cristina Fernández de Kirchner reage a pedido de 12 anos de prisão e de inabilitação para cargos públicos, denuncia perseguição política, desqualifica promotor federal e dispara contra oposição

Rodrigo Craveiro
postado em 24/08/2022 06:00
 (crédito: Juan Mabromata/AFP)
(crédito: Juan Mabromata/AFP)

Perseguição política, ataques ao governo do ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019) e uma tentativa de desacreditar o Ministério Público da Argentina. Menos de 24 horas após o promotor federal Diego Luciani solicitar à Justiça uma pena de 12 anos de prisão para a vice-presidente, além de sua inabilitação política perpétua, essas foram as estratégias adotadas por Cristina Fernández de Kirchner em sua defesa. No pronunciamento de 90 minutos (leia Trechos), transmitido por meio das redes sociais, CFK — como costuma ser chamada em seu país — denunciou as acusações de corrupção em concessões de obras públicas como uma manobra para afastá-la da vida pública. O pedido de prisão de Cristina, por associação ilícita e administração fraudulenta em licitações, ocorre em meio a uma grave crise econômica e à impopularidade do presidente Alberto Fernández, que amarga um índice de aprovação de 19%. 

"O julgamento começa com essa construção, com essa ficção de rotas desfeitas e inexistentes, de superfaturamento. Não eram acusações, mas um roteiro, e bem ruim, por sinal, além de falso", disse Cristina. "Nada, absolutamente nada do que disseram foi comprovado", reforçou, ao insinuar que Luciani buscou visibilidade midiática. "Este não é um julgamento de Cristina Kirchner, é um julgamento contra o peronismo, os governos nacionais e populares: é contra aqueles que lutam por aposentadorias, salários e obras públicas", acrescentou. Ela afirmou que a Justiça "protege aqueles que roubam". Segundo CFK, ao acusá-la de chefiar uma associação ilícita, Luciani demonstrou desconhecer direito administrativo e constitucional. Visivelmente irritada, ela disse que o promotor "não trabalha" e é "mentiroso". 

A agência de notícias France-Presse divulgou que Cristina, que tem foro especial por prerrogativa como vice-presidente, solicitou a ampliação de  sua declaração premilinar — o que foi negado pelo tribunal, por entender que essa etapa foi concluída. Com isso, ela poderá apresentar seus argumentos nas alegações da defesa, a partir de 5 de setembro. A expectativa é de que a Corte Suprema decida pela sentença até dezembro. "O procurador pede 12 anos, são 12 anos, os 12 anos do melhor governo que a Argentina teve nas últimas décadas: o de Néstor Kirchner (o seu marido, falecido em 2010) e meus dois mandatos. (...) Vão me estigmatizar por isso. Vâo me condenar. Quero lhes dizer uma coisa: se eu nascesse 20 vezes, 20 vezes faria o mesmo", disparou CFK.  

 "Cristina acusou cerceamento do seu direito à defesa. Ela buscou argumentar com dados que vincularam sua suposta inocência mais a uma questão política do que técnica", explicou ao Correio Facundo Gabriel Galván, professor de ciência política da Universidad de Buenos Aires (UBA). No entanto, ele admite que CFK cometeu um deslize. "Em determinado momento de seu pronunciamento, ontem, ela lançou uma acusação indireta contra Néstor Kirchner. Foi uma defesa muito mais política. Não acredito que haverá uma mudança na sentença."

Para Galván, a efetiva prisão da líder peronista terá efeitos profundos na sociedade argentina. "Nas ruas, hoje se vê pessoas com cartazes onde se lê 'Cristina ladra', mas também argentinos dispostos a defendê-la até as últimas consequências", comentou. "Não será fácil encarcerá-la sem um custo social enorme, em termos de mobilizações e de convulsão política." Ele acusa a oposição de cometer um erro, ao pedir a intensificação dos protestos contra a vice-presidente. "Parece-me que os adversários políticos de CFK mais saíram perdendo do que qualquer outra coisa. A oposição acabou por contribuir para uma viitimização de Cristina."

Rastros

Em um dos momentos mais emblemáticos da defesa, Cristina admitiu que se sentia "estúpida", ao mostrar conversas por meio do WhatsApp entre José López, seu ex-secretário de Obras Públicas, e Nicolás Caputo, a quem ela identificou como "o amigo de toda a vida" do ex-presidente Mauricio Macri.  "No fim das contas, ela reconheceu que deixou rastros ante causas judiciais supostamente armadas por gente vinculada ao macrismo ou por pessoas que conheciam Néstor Kirchner. Quando disse essa frase, a CFK deu a entender que é inocente e que se envolveu em problemas alheios à sua responsabilidade", avaliou o professor da UBA.  

O consultor político Carlos Fara, diretor da Fara e Associados, concorda com Galván no que diz respeito a uma defesa política adotada pela vice-presidente. "Ela usou um método mais tradicional de argumentação e apoiou-se em uma lawfare (uso ou manipulação das leis como  instrumento de combate a um oponente). Também atribuiu a culpa ao ex-presidente Mauricio Macri, uma estratégia vista com frequência nos último seis anos", afirmou à reportagem. Fara não acredita em desgaste na imagem de Cristina. "Por aqui, todo mundo sabe que ela é culpada e que estava ciente do sistema. Para o governo, a linha de defesa da vice-presidente era a esperada."

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O discurso da "Senhora"

 (crédito:  AFP)
crédito: AFP

"Não eram acusações, mas um roteiro, e bem ruim, por sinal, além de falso"

"Nada, absolutamente nada do que disseram foi comprovado"

"Sou eu que me sinto uma estúpida"

"Vocês fogem. Quando nos perseguem, ficamos aqui, na Argentina" (sobre a situação de Fabián Rodríguez Simón, ex-assessor do ex-presidente Mauricio Macri que está no Uruguai e enfrenta um pedido de captura internacional por extorsão)

"Este não é um julgamento de Cristina Kirchner, é um julgamento do peronismo: é contra aqueles que lutam por aposentadorias, salários e obras públicas"

"O procurador pede 12 anos, são 12 anos, os 12 anos do melhor governo que a Argentina teve nas últimas décadas: o de Néstor Kirchner e meus dois mandatos"

"Vão me estigmatizar por isso. Vâo me condenar. Quero lhes dizer uma coisa: se eu nascesse 20 vezes, 20 vezes faria o mesmo"

"Querem vingança, disciplinar a classe política para que ninguém se atreva a fazer o mesmo de novo"

Dilma Rousseff manifesta apoio

Por meio do Twitter, a ex-presidente Dilma Rousseff demonstrou apoio a Cristina Kirchner, na manhã de ontem. "Manifesto minha mais incondicional solidariedade à vice-presidenta da Argentina e presidenta do Senado deste país irmão, Cristina Kirckner é vítima de mais um ato brutal de lawfare e de perseguição política", escreveu. "Líder popular argentina, Cristina Kirchner está sendo acusada pelo MP (Ministério Público) por supostas irregularidades que teriam ocorrido há mais de 15 anos e que jamais foram provadas. Seu direito à defesa foi violado, com o abusivo acréscimo de acusações que nunca haviam sido feitas", denunciou. Ainda segundo Dilma, "até hoje, tantos anos depois, nenhum tribunal do país considerou válida qualquer acusação contra Cristina. Trata-se de pura perseguição judicial e midiática. É o método que a extrema-direita adota no continente para interditar líderes que vivem no coração do povo", acrescentou.

 

Eu acho...

2021. Crédito: Arquivo Pessoal. Mundo. Facundo Galván, especialista e investigador sobre processos eleitorais (Universidad de Buenos Aires, Universidad de Salamanca e Pontifícia Universidad Católica Argentina).
2021. Crédito: Arquivo Pessoal. Mundo. Facundo Galván, especialista e investigador sobre processos eleitorais (Universidad de Buenos Aires, Universidad de Salamanca e Pontifícia Universidad Católica Argentina). (foto: Arquivo pessoal)

"As evidências apresentadas pelo Ministério Público Federal são contundentes. Parece que Cristina Kirchnersubestimou o peso das acusações e de diálogos comprometedores entre seu filho, Máximo Kirchner, e pessoas de seu entorno, ligadas às concessões de obras públicas. A Argentina enfrenta um momento parecido com o do Brasil durante o julgamento de Luiz Inácio Lula da Silva. Estamos entrando em uma espiral de consequências políticas incertas para o presidencialismo latino-americano."

Facundo Gabriel Galván, professor de ciência política da Universidad de Buenos Aires (UBA)

 

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