A psicoterapeuta Linda Abrams, 68 anos, chegou cedo ao anfiteatro do Instituto Chautauqua, situado na cidade de mesmo nome, no oeste do estado de Nova York. Sentou-se na primeira fileira. Pretendia assistir à palestra daquele que considera "o maior pensador deste século". Às 11h (meio-dia, em Brasília), o escritor anglo-indiano Salman Rushdie, 75 anos, subiu ao palco para participar da conferência literária.
Autor de Os versos satânicos — obra publicada em 1988 que lhe custou um fatwa (decreto religioso) no qual o aiatolá Ruhollah Khomeini ordenava sua morte —, Rushdie deixou o local de helicóptero rumo ao hospital, ensanguentado, pouco depois. "Quando o moderador Henry Reese o apresentava à plateia, do lado esquerdo do palco, um homem saltou atrás de Rushdie e começou a golpeá-lo, muito rapidamente, com uma faca pequena. Havia muito sangue", contou Linda ao Correio.
De acordo com ela, quase que instantaneamente, vários homens cercaram o agressor e deitaram Rushdie no chão. "Médicos na plateia realizaram os primeiros socorros. Entre quatro e cinco homens imobilizaram o atacante. O anfiteatro foi esvaziado muito rapidamente", relatou a testemunha. Ela lembrou que o homem entrou pela parte de trás e correu até o palco.
"Em um primeiro momento, imaginei tratar-se de um integrante da equipe de som ou algo assim. Era muito forte e parecia furioso. Não o escutei falando nada. Apenas vi a explosão corporal e o ataque. O público se pôs a chorar e a gritar: 'Oh, meu Deus!'. Muitos estavam em choque", acrescentou Linda, por telefone.
O jornal The New York Times informou que recebeu um e-mail, por volta das 20h de ontem (hora de Brasília), em que Andrew Wylie, agente literário de Rushdie, afirma que "as notícias não são boas". "Salman provavelmente perderá um olho; os nervos de seu braço foram cortados; e o fígado foi esfaqueado e lesionado", anunciou. O escritor estava intubado.
No fim da tarde, a polícia divulgou a identidade do autor do atentado: Hadi Matar, 24 anos, morador de Fairview (Nova Jersey). Segundo autoridades, Rushdie foi esfaqueado no abdome e no pescoço. O FBI — a polícia federal norte-americana — investiga as motivações do ataque. Henry Reese sofreu ferimentos no rosto, mas recebeu alta. A governadora de Nova York, Kathy Hochul, disse que Rushdie estava vivo e o elogiou como "uma pessoa que passou décadas dizendo a verdade ao poder".
Fontes afirmaram ao jornal The New York Post que Matar seria simpatizante do Irã e do Exército dos Guardiães da Revolução Islâmica. O governo iraniano prometia recompensa de US$ 3 milhões a quem matasse Rushdie. Por quase uma década, ele passou escondido. Muçulmanos consideravam Os versos satânicos um livro ofensivo e desrespeitoso ao profeta Maomé.
Consternação
Às 10h45, o rabino Charles Savenor — diretor executivo da Civic Spirit, organização que promove a educação cívica na fé — se acomodou na poltrona do anfiteatro para assistir à palestra de Rushdie.
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"Para nós, isso seria o ponto alto da semana. Ele falaria sobre como os EUA e a democracia podem apoiar escritores políticos. Sob aplausos, os senhores Rushdie e Reese se dirigiram até as duas poltronas colocadas no centro do palco. De repente, vi alguém pulando no palco e desferindo vários golpes em Rushdie. Então, tudo foi choque e horror. Foi algo maluco e surreal. O braço do agressor ia para baixo e para cima e não sabíamos exatamente o que estava acontecendo. Ficou claro que Rushdie havia sofrido um ataque", relatou ao Correio, também por telefone.
De acordo com Savenor, 53, algumas pessoas subiram ao palco para socorrer o escritor. "Depois que os seguranças chegaram, fiz alguns vídeos e saí do anfiteatro, acompanhado de amigos. Eu estava profundamente abalado e consternado pelo que tinha acabado de presenciar", afirmou.
Após deixar o local, o rabino escutou, pelo alto-falante, uma mensagem solicitando ao público que se retirasse de forma rápida e calma. "Não vimos o que aconteceu a Rushdie depois do atentado ou a Reese, apesar de tomarmos conhecimento de que ele também sofreu lesões. Sabemos que a reverberação do atentado afetou a todos no Instituto Chautauqua e incitou um triste debate nos Estados Unidos e no mundo", acrescentou.
Savenor explicou que a Civic Spirit treina educadores cívicos e escolas. "O que ocorreu hoje (ontem) foi uma total violação de tudo aquilo que defendemos. Nós acreditamos no diálogo aberto e no debate saudável. O incidente de hoje (ontem) foi a antítese de nossos melhores ideais", comentou. Ele confidenciou que pretendia fazer uma pergunta a Rushdie ao fim do programa. "Eu teria perguntado a ele sobre seu conselho para a próxima geração sobre superar diferenças."
A agência estatal de notícias iraniana Irna limitou-se a informar que "Salman Rushdie, o autor apóstata do livro Os versos satânicos, foi atacado enquanto estava em Nova York". A milícia fundamentalista islâmica Talibã, que governa o Afeganistão, lembrou ao Correio que "Rushdie cometeu um ato de blasfêmia e feriu os sentimentos de 1,5 bilhão de muçulmanos". Ao ser perguntado se o escritor merecia o ataque, Mohammad Suhail Shaheen — chefe do Escritório Político do Talibã em Doha (Catar) e ex-porta-voz do grupo — respondeu: "Por que não?".
O premiê demissionário do Reino Unido, Boris Johnson, se disse "chocado" com o fato de "Sir Salman Rushdie ter sido esfaqueado ao exercer um direito que nunca devemos deixar de defender". "Meus pensamentos estão com seus entes queridos."
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Eles estavam lá
"Um homem saltou atrás de Salman Rushdie e começou a golpeá-lo, muito rapidamente, com uma faca pequena. Havia muito sangue"
Linda Abrams, 68 anos, psicoterapeuta. Estava na primeira fileira do anfiteatro
"Tudo foi choque e horror. Foi algo maluco e surreal. O braço do agressor ia para baixo e para cima e não sabíamos exatamente o que estava acontecendo"
Charles Savenor, 53 anos, rabino e diretor executivo da organização Civic Spirit