RÚSSIA

O escândalo de torturas e estupros revelado por ex-prisioneiros na Rússia

Vítimas e especialistas dizem que os abusos acontecem sempre com o aval das autoridades prisionais e é usado para chantagear os presos, intimidá-los ou forçar confissões

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BBC Eye Investigations
postado em 10/08/2022 17:37

Aviso: este artigo contém imagens e descrições gráficas de abuso e violência sexual

Ex-presos russos falaram com a BBC sobre torturas e estupros sistemáticos que sofreram em prisões do país, depois que imagens de abusos foram vazadas por uma fonte no ano passado.

O hospital prisional de Saratov, no sudoeste da Rússia, ganhou notoriedade no ano passado quando vídeos de horríveis abusos contra prisioneiros vazaram para uma organização de direitos humanos e foram divulgados pela imprensa internacional.

Alexei Makarov conhecia a reputação da prisão antes de ser transferido para lá em 2018 para cumprir uma pena de seis anos por agressão. Prisioneiros que são enviados para Saratov de outras prisões dizem que um hospital foi criado no local apenas para que detentos pudessem ser torturados a portas fechadas.

Alexei Makarov
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Alexei Makarov diz que funcionários da prisão sabiam do abuso que ele sofreu

As prisões russas praticamente não têm supervisão independente, e os hospitais prisionais — com suas regras de quarentena sanitária — menos ainda.

Makarov estava realmente doente. Ele havia sido diagnosticado com tuberculose — e esperava ser poupado de torturas. Mas ele diz que foi estuprado duas vezes enquanto esteve lá.

Vítimas e especialistas dizem que os abusos acontecem sempre com o aval das autoridades prisionais e é usado para chantagear os presos, intimidá-los ou forçar confissões.

Prisoneiro em Saratov sendo torturado
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Imagens de uma câmera corporal vazaram da prisão de Saratov no ano passado

Vazamentos de alta repercussão obrigaram o governo russo a responder ao escândalo no país. A tortura foi relatada em 90% das regiões da Rússia entre 2015 e 2019, de acordo com o projeto independente Proekt. Mas a ação tem sido lenta.

A BBC analisou milhares de documentos judiciais que datam desse período e descobriu que 41 membros do serviço penitenciário foram condenados. Mas quase metade deles recebeu apenas sentenças em suspenso — em que não precisam cumprir pena de prisão.

A BBC conversou com prisioneiros, incluindo Makarov, sobre o que sofreram no sistema prisional russo.

Makarov diz que foi torturado pela primeira vez em fevereiro de 2020. Ele se recusou a confessar que participava de um suposto complô contra a administração da prisão. Acabou sendo submetido a abusos sexuais violentos contínuos por três homens, diz ele.

"Por 10 minutos eles me bateram, rasgaram minhas roupas. E por algo como duas horas eles me estupraram a cada dois minutos com cabos de vassoura. Quando eu desmaiava, eles jogavam água fria e me colocavam de novo sobre a mesa."

Dois meses depois, isso voltou a acontecer. Ele foi coagido a pagar 50 mil rublos (mais de R$ 4 mil) a seus agressores e diz que foi estuprado na tentativa de silenciá-lo.

Makarov disse à BBC que sua tortura na prisão foi filmada. Os presos sabem que as imagens humilhantes podem ser compartilhadas com toda a prisão se não cumprirem as exigências.

Os estupradores eram outros presos, que — Makarov e outros têm certeza — agiram sob as instruções dos chefes da prisão.

Música era tocada a todo volume durante os episódios de tortura, diz Makarov, para disfarçar os gritos.

Gravações escondidas

O vazamento de imagens de Saratov do ano passado foi publicado com a ajuda de outro ex-detento da prisão. Sergey Savelyev conseguiu contrabandear imagens mostrando humilhação e violência contra dezenas de presos.

Ele também acredita que a tortura é aprovada nos escalões mais altos da prisão como parte de um sistema organizado.

Savelyev teve acesso às filmagens porque foi chamado para trabalhar no departamento de segurança da prisão, que não tem funcionários suficientes para lidar com a demanda. Ele foi empregado para monitorar e catalogar as imagens das câmeras corporais usadas pelos agentes penitenciários.

Mas ele disse à BBC que, quando se trata de torturar um prisioneiro em Saratov, os policiais obrigam outros presos a fazer seu trabalho sujo — e pedem que usem câmeras corporais para filmar o abuso.

"Eu recebia ordens [para dar câmeras corporais aos presos] do chefe de segurança", diz ele.

Ele foi instruído a salvar as imagens gravadas de alguns desses ataques para mostrar ao departamento de segurança e, às vezes, transferi-las para uma unidade para que pudessem ser mostradas a funcionários de maior escalão.

Depois que descobriu os horrores que aconteciam a portas fechadas, ele começou a copiar os arquivos e a escondê-los.

"Simplesmente ver isso tudo e não fazer nada é tratar como se fosse normal", diz.

Em alguns dos clipes, os homens que praticam a tortura são vistos usando algemas — equipamentos que, como as câmeras corporais, só são entregues a agentes penitenciários.

Savelyev diz que os prisioneiros que cometem os abusos são, em regra, aqueles que foram condenados por crimes violentos e, portanto, estão cumprindo longas sentenças. Como tal, eles estão interessados em agradar as autoridades para receberem tratamento melhor, diz ele. Esses prisioneiros às vezes recebem o apelido de "pressovschiki".

Sergey Savelyev
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O ex-detento Sergey Savelyev publicou imagens chocantes

"Eles devem querer se sair bem durante este período, querendo que a administração da prisão cumpra suas promessas, para que possam comer bem, dormir bem e ter alguns privilégios", explica Savelyev.

Protocolo e método

O ativista Vladimir Osechkin, cuja organização Gulagu.net publicou os vídeos vazados, chama atenção para uma espécie de protocolo assustador seguido pelos torturadores — o que indica que esses procedimentos são bastante praticados.

"Eles estão dando sinais um ao outro, agindo em um arranjo silencioso, entendendo um ao outro mesmo sem palavras porque estão seguindo um sistema bem estabelecido. [O homem na imagem] sinaliza como se deve abrir as pernas de outro homem para que se possa estuprá-lo."

Após o vazamento das provas por Savelyev, seis "pressovschiki" foram identificados, mas negaram qualquer envolvimento. Dois meses depois, o diretor do hospital prisional de Saratov e seu vice também foram presos — ambos negaram qualquer ligação com os abusos mostrados nos vídeos.

O presidente russo, Vladimir Putin, substituiu o chefe do serviço penitenciário nacional e anunciou que "medidas sistemáticas" eram necessárias para promover mudanças. A lei do país foi alterada no mês passado para introduzir punições severas para o uso de tortura como meio de abuso de poder ou extração de provas.

Mas ativistas de direitos humanos enfatizam que a tortura ainda não foi criminalizada.

Não é a primeira vez que o presidente Putin promete mudanças. Ele fez uma promessa semelhante, após um primeiro vazamento de imagens, em 2018, que mostrava guardas realizando espancamentos em massa em uma prisão em Yaroslavl, ao norte de Moscou.

Onze funcionários da prisão de Yaroslavl receberam sentenças mínimas em 2020 e seus dois chefes foram absolvidos.

A advogada Yulia Chvanova, especializada em representar vítimas de tortura, diz que a principal motivação para o abuso organizado de prisioneiros é o foco das autoridades em confissões, independentemente de haver culpa ou não.

Por isso, os funcionários responsáveis pela investigação do crime são os principais instigadores da tortura nas prisões russas, diz ela.

"Confissões [são colocadas] como prioridade."

Ela está tentando obter uma compensação para Anton Romashov, de 22 anos, que foi torturado em 2017 depois de se recusar a admitir crimes que não cometeu.

Romashov havia sido preso por posse de maconha, mas a polícia o pressionava a confessar tráfico de drogas — um delito muito mais grave. Quando se recusou a confessar, foi levado para um centro de detenção preventiva de Vladimir, no oeste da Rússia, no final de 2016.

Centro de detenção de Vladimir
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Centro de detenção de Vladimir, onde Anton foi torturado na cela 26

"Eu fui levado para a [cela] número 26. Eu sabia exatamente que tipo de cela era... porque ouvi gritos vindos de lá, gritos por dias a fio."

Lá, dois homens o esperavam. Ele diz que foi jogado no chão, com as mãos e os pés amarrados atrás do corpo, antes de ser espancado por um dia inteiro.

Quando abaixaram suas calças, ele disse que assinaria o que quisessem. Ele foi condenado a cinco anos de prisão, apesar de ter dito ao tribunal que havia sido torturado para confessar.

Uma investigação sobre as práticas no centro de detenção de Vladimir aconteceu depois que outro prisioneiro assassinou um dos "pressovschiki" que o ameaçava com tortura.

Interrogados, os funcionários da prisão revelaram que a maioria deles sabia o que estava acontecendo na infame cela 26. O funcionário da prisão que dirigia a cela de tortura foi condenado em um julgamento no qual Anton e outros dois presos depuseram.

Anton Romashov
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Anton Romashov diz que seus torturadores queriam que ele confessasse tráfico de drogas

Mas o maior escândalo de tortura na Rússia até hoje ocorreu na região siberiana de Irkutsk. Após um protesto na primavera de 2020 na Prisão 15 em Angarsk, perto da cidade de Irkutsk, as autoridades enviaram o esquadrão de choque.

Centenas de prisioneiros foram levados para dois centros de detenção onde agentes penitenciários esperavam com "pressovschiki".

Um dos que dizem ter sido torturados no centro, Denis Pokusaev — que cumpria uma pena de três anos por fraude — diz que os funcionários da prisão não escondiam o motivo de eles serem punidos.

"[Eles] me disseram: 'Você acha que nós nos importamos se você é culpado ou não? Você veio de um motim — então você vai ser responsabilizado por isso'."

'Eles apenas riem'

A advogada Yulia Chvanova explica como tudo costumava acontecer.

Yulia Chvanova
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A advogada Yulia Chvanova está tentando obter indenização por vários de seus clientes

"[Os investigadores] decidem quem interrogar, quais testemunhas e quais investigações conduzir... Eles então entram em contato com o pessoal da prisão com instruções: 'Preciso de uma confissão de um indivíduo em particular'."

Pokusaev diz que a perseguição era implacável.

"O abuso durou quase três meses todos os dias, exceto fins de semana."

Ele diz que os funcionários estiveram envolvidos nas sessões de tortura.

"Eles riam, comiam frutas... Uma pessoa está sendo estuprada com todos os tipos de objetos... E eles apenas riem, eles gostam."

A BBC pediu ao serviço penitenciário russo que comentasse as alegações de tortura e estupro nas prisões e centros de detenção do país, mas não obteve resposta.

Ativistas de direitos humanos estimam que pelo menos 350 prisioneiros foram torturados após as rebeliões.

Denis Pokusaev
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Denis Pokusaev quer obter justiça pelo que aconteceu com ele

Pokusaev está entre os cerca de 30 homens que conquistaram o direito de serem legalmente reconhecidos como vítimas do incidente e um dos poucos dispostos a testemunhar no tribunal.

Espera-se que a investigação dê origem a vários julgamentos. No caso de Denis, ele e outros presos estão dispostos a depor contra dois funcionários da prisão — ambos negam as acusações feitas contra eles.

Yulia e todos os que depuseram no caso foram obrigados a assinar um acordo de confidencialidade. Não está claro se alguma das descobertas levará a uma reforma significativa.

Pokusaev diz que ainda está abalado pelo que aconteceu com ele.

"Venho a uma floresta ao lado de nossa casa quase todos os dias. E grito obscenidades, grito tudo isso para não guardar isso dentro de mim."

Mas ele está determinado a tentar obter justiça. Ele acredita que isso é possível se as pessoas falarem sobre o que aconteceu.

"Neste momento, as pessoas [na Rússia] têm medo de dizer qualquer coisa... é por isso que as pessoas não conseguem nada."

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62492834


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