Esquerda no poder

É hora da mudança", diz novo presidente da Colômbia

Ao tomar posse como o primeiro presidente de esquerda da história do país, o ex-guerrilheiro Gustavo Petro defende o fim da "fracassada" luta antidrogas, propõe benefícios jurídicos a grupos que baixarem armas e promete governo para todos

Rodrigo Craveiro
postado em 08/08/2022 06:00
Petro (E) e a vice, Márquez, se abraçam durante a cerimônia solene -  (crédito: Juan Barreto/AFP)
Petro (E) e a vice, Márquez, se abraçam durante a cerimônia solene - (crédito: Juan Barreto/AFP)

O fim da atual guerra contra as drogas, o aceno à paz, o convite à deposição de armas em troca de benefícios jurídicos, a promessa de combate à desigualdade socioeconômica, e a disposição de encerrar todas as diferenças ideológicas na América Latina. O pronunciamento de posse de Gustavo Petro — um ex-integrante da guerrilha M-19 — foi marcado como o anúncio de um ponto de ruptura na história de uma nação de 49 milhões de destinos. "Em nossa história, colombianos e colombianas foram, tantas vezes, enviados à condenação do impossível, à falta de oportunidades, ao retumbante 'não'", disse.

Ele rendeu homenagem ao escritor colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), ao citar um trecho de sua obra Cem anos de solidão: "Tudo o que estava escrito neles era irrepetível desde sempre e por todo o sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra". "Quero dizer a todos os colombianos e a todas as colombianas que me escutam nesta Plaza Bolívar (...) que hoje começa nossa segunda oportunidade", acrescentou.

O primeiro presidente de esquerda da Colômbia anunciou que o esforço dos colombianos "valeu e valerá a pena". "É hora da mudança. Nosso futuro não está escrito. Somos os donos da caneta e podemos escrevê-lo juntos, em paz e em união", afirmou o mandatário de 62 anos, diante da espada do venezuelano Simón Bolívar, responsável por libertar países da América do Sul do jugo espanhol. "Hoje, começamos a trabalhar para que o impossível seja possível na Colômbia. Temos que terminar, de uma vez por todas, para sempre, com seis décadas de guerra. Cumpriremos com o acordo de paz", avisou.

Ele propôs que o fim da violência seja alcançado com mais democracia e uma maior participação da cidadania. "Convocamos (...) a todos os armados a depor suas armas nas nebulosas do passado. A aceitar benefícios jurídicos em troca da paz, em troca da não repetição definitiva da violência. (...) Para que a paz seja possível na Colômbia, precisamos dialogar muito. A paz implica que mudemos", comentou. Petro pediu uma mudança na política de combate às drogas na Colômbia. "É hora de uma nova convenção internacional que aceite que a guerra contra as drogas fracassou. (...) Que a guerra contra as drogas levou os Estados a cometerem crimes." Segundo ele, a paz será possível se a política antidrogas deixar de ser vista como uma guerra e passar a ser abordada como uma política de prevenção de consumo.

Alejandro Bohorquez-Keeney, professor de governo da Universidad Externado de Colombia (em Bogotá), explicou ao Correio que existe um distanciamento entre o que o presidente promete em discursos de posse e o que consegue fazer. "Governar esse país é algo muito complicado. Petro citou dois temas-chave: os grupos armados e as drogas. Ele terá o apoio de Joe Biden para acabar com a guerra antidrogas. Ao escolher esse assunto, Petro busca tranquilizar os nossos sócios norte-americanos", afirmou. 

  • Vestido como o libertador colombiano Simom Bolívar, homem chora ao acompanhar a posse Schneyder Mendoza/AFP
  • O novo chefe de Estado presta juramento, antes de receber a faixa AFP
  • A espada de Simón Bolívar é carregada até o palco pela guarda de honra Juan Barreto/AFP
  • Diante da Plaza Bolívar lotada, em Bogotá, Gustavo Petro empossa sua vice-presidente, Francia Márquez, a primeira mulher negra a ocupar o cargo AFP

Em relação aos grupos armados, ele classifica a situação do Exército de Libertação Nacional (ELN) como pendente. "É uma guerrilha tremendamente doutrinária, não campesina, como foram as Farc. O ELN está muito mais apegado à ideologia. Para Petro, a aproximação a esse grupo será complicado", aposta Alejandro. "A criminalidade, no contexto de nossa posição geográfica e geopolítica, se impõe a Petro como algo obrigatório a ser tratado. Os grupos armados se financiam com o narcontráfico, especialmente com a cocaína."

Especialista em opinião pública com mestrado em gerência política, o cientista político Daniel Quiroga observou à reportagem que Petro resgatou o tom propositivo da agenda de governo. "Foi um discurso repleto de símbolos, com a paz no centro e com a reconciliação como o ato mais importante. Ele resgatou o chamado ao diálogo com todos os setores e a mudança que pretende dar à política antidrogas e ambiental", avaliou. 

Por e-mail, Ernesto Samper, presidente da Colômbia entre 1994 e 1998, afirmou que o plano de governo de Petro poderá ser beneficiado pelo forte apoio no Congresso. "No momento, 70% dos grupos políticos representados no Congresso demonstraram apoio a Petro. Ele assinalou que sua linha vermelha, em matéria de ação ideológica, será o respeito à Constituição. As Forças Armadas colombianas expressaram seu respaldo ao novo chefe de Estado, obedecendo à longa tradição civilista e democrática. Em resumo, a governabilidade no primeiro ano está garantida."

Emoção

A cerimônia teve início às 15h10 (17h10 em Brasília), com a execução do Hino Nacional da Colômbia, enquanto um telão exibia imagens de diversas regiões do país, de manifestações culturais e das Forças Armadas. O presidente do Congresso da República da Colômbia, senador Roy Leonardo Barreras Montealegre, deu posse a Petro. "Juro a Deus e prometo ao povo cumprir fielmente a Constituição e as leis da Colômbia", declarou o novo líder. Às 15h20, María José Pizarro — filha de Carlos Pizarro, ex-líder da guerrilha M-19 assassinado em 1990 — foi convidada por Montealegre a colocar a faixa no novo chefe de Estado. A senadora não conteve as lágrimas. Depois das 21 salvas de canhão, Petro comandou o juramento da vice, Francia Márquez, selado com um abraço. 

O líder do Congresso afirmou que a eleição do primeiro governo progressista de esquerda da nação representa uma ruptura, uma quebra da história. Um dos momentos mais solenes ocorreu pouco antes do discurso de Petro e após um recesso de 10 minutos na cerimônia. Quatro soldados, vestidos com uniforme de gala e cercados por vários seguranças, marcharam até a Plaza Bolívar carregando uma redoma de vidro que trazia a espada de Simón Bolívar.  

 

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Trechos / O discurso de posse

Os principais trechos do pronunciamento de Petro

 

"Quero dizer a todos os colombianos e colombianas que hoje começa a nossa segunda oportunidade. Seu esforço valeu e valerá a pena. É a hora da mudança."

 

"Estamos aqui, contra todos os prognósticos, e contra uma história que nos dizia que nunca poderíamos governar. Contra aqueles que não queriam se soltar do poder."

 

"Temos que terminar de uma vez por todas, para sempre, com seis décadas de guerra. Cumpriremos com o acordo de paz."

 

"Para que a paz seja possível na Colômbia, necessitamos dialogar muito. A paz implica que mudemos."

 

"A guerra contra as drogas fracassou enormemente. Nosso Estado cometeu crimes e evaporou o horizonte da democracia."

 

"Somos uma das sociedades mais desiguais socialmente. Isso é um aberração que não pode continuar, se quisermos ser uma nação, se quisermos viver em paz."

 

"Sou o presidente de toda a Colômbia e de todos os colombianos."

 

"É hora de deixar as diferenças ideológicas para trabalharmos juntos. Que se acabe a divisão da América Latina!"

 

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