Começa amanhã uma experiência política absolutamente nova para a Colômbia, com a posse do primeiro presidente eleito pela esquerda. Gustavo Petro começou a vida política pela via das armas, como guerrilheiro do Movimento 19 de Abril (M-19). Era uma formação atípica, num país onde a violência foi endêmica ao longo de dois séculos de vida independente e republicana, com surtos de rara ferocidade. Em um deles, entre os anos 1960 e o fim da década passada, o M-19, de viés nacionalista, destoava das guerrilhas de inspiração diretamente marxista, como Farc e ELN.
Petro foi um dos artífices da desmobilização do grupo, selada em 1991, com um acordo pelo qual o presidente César Gaviria convocou uma Constituinte e outorgou certo número de cadeira aos ex-rebeldes. Foram necessárias três décadas arriscando a vida na busca de espaços até a esquerda civil chegar ao ponto de apresentar uma candidatura viável e conduzir uma campanha vitoriosa para, finalmente, conquistar a Casa de Nariño.
Pela perspectiva da diplomacia brasileira e dos vizinhos sul-americanos, a virada na Colômbia tem desdobramentos que se potencializam com a presença de outros governantes alinhados com a esquerda. O cenário da região fica agora pendente, em grande medida, do desfecho da eleição de outubro e da definição de quem estará no Planalto a partir de 2023.
Pré-estreia
Se serve como indicação do quanto a chegada de Petro pode redesenhar as relações nas vizinhanças, vale observar com atenção um movimento capital que antecedeu a posse. Alvaro Leyva, o chanceler escolhido pelo novo presidente colombiano, visitou Caracas nesta semana. Reuniu-se com o colega venezuelano, Carlos Faria, e com o presidente Nicolás Maduro.
No período mais agudo do conflito armado entre o Estado e as guerrilhas, em especial as Farc, a fronteira entre os dois países foi foco recorrente de crises. Desde a ascensão de Hugo Chávez, repetiram-se as acusações partidas de Bogotá sobre a utilização do território venezuelano como refúgio para combatentes irregulares. No período em que a Colômbia foi governada por Álvaro Uribe (2002-2010) as tensões se acirraram ao grau máximo, inclusive pelas incursões de formações paramilitares colombianas para além da divisa.
Três para lá...
Apenas três anos atrás, no início de 2019, os governos direitistas de Brasil, Colômbia e Chile formaram o tripé de apoio à frustrada autoproclamação do político oposicionista Juan Guaidó como "presidente interino" da Venezuela. Jair Bolsonaro, Ivan Duque e Sebastián Piñera, respectivamente, foram também os articuladores de uma iniciativa destinada a substituir a Unasul, criada em meados dos anos 2000 sob a batuta de Lula, Hugo Chávez e do colega argentino, Néstor Kirchner.
...três para cá?
Com a posse de Gustavo Petro, o que se ensaia é um triângulo invertido. No Chile, é o esquerdista Gabriel Boric quem ocupa o Palácio de La Moneda — o mesmo onde, em 1973, o socialista Salvador Allende morreu resistindo ao bombardeio pela Força Aérea, imagem inapagável do golpe que deu início a duas décadas de ditadura do general Augusto Pinochet.
Agora, a expectativa é pelo possível retorno de Lula ao Planalto. Reforçado por governos de esquerda na Argentina e na Bolívia, o eixo Brasil-Colômbia-Chile se perfilaria, em 2023, como núcleo para o relançamento da Unasul e a retomada de uma iniciativa de integração que busca construir na região um espaço próprio, alternativo ao enquadramento na geopolítica dos EUA para aquele que considera o seu "quintal".
Jogo combinado
Para o Brasil, a recomposição de forças pode ter impacto, em particular, na fronteira amazônica, cuja vulnerabilidade foi exposta pelo assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips. O episódio deixou evidente a presença enraizada do crime organizado, em múltiplas variantes que se entrosam e se combinam para explorar a ausência das forças de Estado: garimpo e extração de madeira ilegais, tráfico de drogas, armas e animais silvestres.
Do lado oposto, a coordenação de ações esbarrou historicamente nos desencontros entre os governos de Brasil, Colômbia, Venezuela e Peru. Durante cinco décadas, o conflito armado colombiano atuou como fator de desestabilização das relações entre os vizinhos. A presença da guerrilha chegou a ser considerada empecilho incontornável para o combate ao narcotráfico.
Hoje, passados seis anos desde o acordo de paz com as Farc, e mais de 30 desde a virtual liquidação do Sendero Luminoso, no Peru, a Amazônia brasileira continua crescendo de importância na geopolítica da droga. É rota significativa para escoar cocaína com destino à Europa, via Caribe ou África, assim como para abastecer o mercado brasileiro — o segundo maior do mundo, atrás apenas dos EUA (ou o terceiro, caso se tomem os europeus como um bloco).
Atuando de maneira concertada, em lugar apontar o dedo uns para os outros, os governos da região têm a chance de se contrapor ao crime organizado com a própria articulação.
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