No dia em que a presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, Nancy Pelosi, desafiou a China e desembarcou em Taipei, o governo de Xi Jinping reagiu com manobras militares e com mais ameaças. Taiwan acusou Pequim de realizar, somente ontem, 21 incursões em sua Zona de Identificação de Defesa Aérea (ADIZ). Os caças chineses invadiram o sudoeste da região, que inclui uma área maior do que o espaço aéreo taiwanês e se sobrepõe parcialmente à zona chinesa. Em nota à imprensa, o Exército de Libertação Popular (ELP) anunciou que "está em alerta máximo" e "tomará uma série de operações militares seletivas em resposta decisiva para salvaguardar a soberania e a integridade territorial da China e para frustrar (...) a interferência de forças externas e os esquemas separatistas pela 'independência de Taiwan'".
A agência estatal de notícias chinesa Xinhua também divulgou que o ELP realizará, entre meio-dia de amanhã (13h em Brasília) e meio-dia de domingo, "importantes exercícios militares e atividades de treinamento, incluindo exercícios de tiro real em áreas marítimas e no espaço aéreo" em seis pontos que cercam toda a ilha de Taiwan — a norte, nordeste, noroeste, leste, sul e sudoeste. A aterrissagem do Boeing C-40C da Força Aérea dos EUA que levava Pelosi ocorreu sob forte tensão e receio de demonstrações de força por parte da China.
Para evitar o Mar do Sul da China, o avião decolou da Malásia e adotou uma rota de voo alternativa: ao invés de seguir rumo a nordeste até Taiwan, dirigiu-se ao sul e sobrevoou a Indonésia e as Filipinas, até fazer nova guinada ao norte e aterrissar em Taipei por volta das 22h44 (11h44 em Brasília). Protestos contrários à visita e celebrações de boas vindas foram registrados na capital taiwanesa. O arranha-céu Taipei 101, um dos símbolos do poder econômico de Taiwan, recebeu projeções de saudações a Pelosi, a primeira presidente da Câmara a visitar a ilha em 25 anos. Cerca de 45 minutos depois de desembarcar em Taipei, Pelosi divulgou um comunicado à imprensa. "A visita de nossa delegação honra o compromisso inabalável dos EUA em apoiar a democracia vibrante de Taiwan", escreveu.
De acordo com ela, a escala na ilha capitalista é parte de uma viagem mais ampla pela região do Indo-Pacífico — que inclui Cingapura, Malásia, Coreia do Sul e Japão — e se foca na segurança mútua, na parceira econômica e na governança democrática. "Nossas discussões com a liderança de Taiwan se centrarão na reafirmação de nosso apoio pela nossa parceria e na promoção de interesses partilhados. (...) A solidariedade dos EUA com os 23 milhões de cidadãos de Taiwan é mais importante do que nunca, pois o mundo enfrenta uma escolha entre autocracia e democracia", acrescentou. Ao mesmo tempo, Pelosi assegurou que o governo norte-americano mantém oposição a quaisquer esforços unilaterais para mudar o status quo da ilha.
Na manhã de hoje, ela será recebida pela presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, e se reunirá com congressistas de Taiwan. Depois de visitar o Parque Memorial Jing-Mei White Terror, uma antiga prisão militar transformada em museu pró-direitos humanos, a norte-americana deixará a ilha às 17h (6h em Brasília) para prosseguir com o tour pela Ásia.
O Ministério das Relações Exteriores chinês alertou que Pelosi desconsiderou a forte oposição de Pequim e cometeu grave violação do princípio "Uma só China" e das disposições de três comunicados conjuntos entre China e EUA. "Isso tem um impacto severo nos fundamentos políticos da relação entre os dois países, e infringe gravemente a soberania e a integridade territorial da China", afirmou a nota. Ainda segundo a chancelaria, a visita da congressista mina a paz e a estabilidade no Estreito de Taiwan. "Existe apenas uma China no mundo, e Taiwan é parte inalienável do território da China. (...) O princípio de 'Uma só China' é consenso universal da comunidade internacional e uma norma básica nas relações internacionais." O texto acusa os EUA de tentarem usar Taiwan para conter a China e de encorajarem atividades separatistas pela "independência de Taiwan". "Essas manobras, assim como brincar com fogo, são extremamente perigosas. Aqueles que brincam com fogo perecerão nele."
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Retaliação
Professor do Instituto de Estudos da China e da Ásia Pacífico pela Universidade Nacional Sun Yat-sen, em Taipei, Kuo Yujen disse ao Correio esperar que a China reaja muito fortemente à visita de Pelosi com uma ação militar. "Os cenários incluem testes de mísseis; o bloqueio parcial do porto de Kaoshiung por exercícios navais com semanas de duração, no Mar do Sul da China; o envio de caças e de barcos de guerra na linha mediata no Estreito de Taiwan; além de testes bélicos ao norte e a leste de Taiwan", explicou.
De acordo com o estudioso taiwanês, a viagem da congressista norte-americana ocorre em um momento "muito embaraçoso" para o presidente da China, Xi Jinping. "O Partido Comunista Chinês (PCC) passará por uma remodelação de seus quadros, durante reunião no resort de Beidaihe (província de Hebei). Essa renovação será um preparativo para o 20º Congresso do PCC, agendado para o fim deste ano", disse Kuo.
A visita surtirá impacto nas relações sino-americanas, na opinião do especialista. Ele cita que China e Estados Unidos enfrentarão aumento da desconfiança mútua e terão mais dificuldades em gerenciar riscos. Além disso, Kuo aponta que ambos países tendem a endurecer suas posições. "Será especialmente difícil obter consenso sobre a guerra na Ucrânia. Os EUA tentam persuadir a China a não apoiar a Rússia, a fim de encerrar o conflito na Ucrânia antes do inverno no Hemisfério Norte (a partir de setembro", advertiu.
Para Fang-yu Chen, cientista político da Universidade Soochow (em Taipei), uma resposta militar da China contra Taiwan é algo "absolutamente impossível". "Pequim ambiciona usar a força contra Taiwan, e seus líderes têm reiterado isso várias vezes. No entanto, a China não está pronta para lutar contra os EUA — o Exército de Libertação Popular possui uma enorme lacuna, em comparação com as forças norte-americanas. Também há o fato de Xi Jinping estar prestes a obter o terceiro mandato. Ele não quer correr o risco de desencadear um evento tão grande", disse à reportagem.
Fang-yu observa que a visita de Pelosi estava previamente agendada para abril. Como a congressista testou positivo para a covid-19, precisou remarcar a viagem. "Pelosi quer visitar países aliados dos EUA e forjar uma espécie de aliança democrática. Esta viagem envolve nações democráticas que colaboram contra ditaduras."
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"A visita de Nancy Pelosi àa Taiwan também reflete o fato de que a maior parte das elites políticas norte-americanas, tanto democratas quanto republicanos, discordam com a abordagem do presidente Joe Biden de faclitar as relações com a China, a fim de encerrar a guerra na Ucrânia antes de setembro. Também há discordância em relação à mudança gradual de atenção, por parte de Biden, do Indo-Pacífico para a Europa."
Kuo Yujen, professor do Instituto de Estudos da China e da Ásia Paífico pela Universidade Nacional Sun Yat-sen, em Taipei
"A confiança do presidente Xi Jinping em ameaçar os Estados Unidos vem de uma ilusão de que os norte-americanos teriam medo de um confronto direo com a China. Por sua vez, tal ilusão deriva de uma longa política de apaziguamento seguida por Washington. Agora que os EUA estão finalizando essa política, é melhor que Xi abandone sua ilusão."
Wuer Kaixi, um dos principais líderes dos protestos estudantis e sobrevivente do massacre da Praça da Paz Celestial, em 4 de junho de 1989
"Não creio que a viagem de Pelosi representará grandes mudanças nas relações entre os EUA e a China. A competição pelo status de 'grande potência global' já começou. Na verdade, Pequim é que tem provocado essa relação, ao militarizar as ilhas do Mar do Sul da China e ao alegar que tem direito de controle sobre o Estreito de Taiwan."
Fang-yu Chen, cientista político da Universidade Soochow (em Taipei)
Sete décadas de antagonismo
As relações entre China e Taiwan, difíceis desde a sua separação em 1949, são fonte de tensões recorrentes entre Washington e Pequim
Separação
Em 1º de outubro de 1949, o líder comunista Mao Tsé-tung (foto) proclamou a fundação da República Popular da China, após derrotar os nacionalistas na guerra civil que eclodiu após a Segunda Guerra Mundial e durou quatro anos. As tropas nacionalistas do Kuomintang, lideradas por Chiang Kai-shek, recuaram para Taiwan e formaram um governo. Os nacionalistas proibiram qualquer relação com a China continental. Pouco depois aconteceu a primeira de uma série de tentativas do Exército de Libertação Popular da China (ELP) de tomar as ilhotas de Quemoy e Matsu. Em 1950, Taiwan tornou-se um aliado dos Estados Unidos, então em guerra contra a China na Coreia.
Representação na ONU
Em 5 de outubro de 1971, a China substituiu Taiwan na ONU. Em 1979, os Estados Unidos romperam relações diplomáticas com Taiwan e reconheceram Pequim. Quase toda comunidade internacional adotou a política de "Uma só China", que exclui as relações diplomáticas com o governo nacionalista. Nesse cenário, Washington continuou sendo o principal aliado de Taiwan e seu principal fornecedor de equipamentos militares.
Lei antissecessão
Em 1987, Taiwan autorizou viagens à China continental para reuniões familiares, abrindo assim o caminho para trocas comerciais. Em 1991, Taipei aboliu as disposições que estabeleciam o estado de guerra com a China. Mas, em 1995, a China cancelou as negociações de normalização em protesto contra a viagem do presidente taiwanês Lee Teng-hui (foto) aos Estados Unidos. No ano seguinte, a China lançou mísseis perto da costa taiwanesa, pouco antes da primeira eleição presidencial por sufrágio universal em Taiwan. Em 14 de março de 2005, a China adotou uma lei antissecessão que previa meios "não pacíficos" caso Taiwan declare independência.
Diálogo inédito
Em 2008, China e Taiwan retomaram o diálogo suspenso em 1995. Em 2010, eles assinaram um acordo de cooperação econômica e, quatro anos depois, estabeleceram um diálogo intergovernamental. Em 7 de novembro de 2015, os presidentes chinês e taiwanês se reuniram em Cingapura, algo inédito desde a separação.
Tensões
Em 2016, Tsai Ing-wen (foto), que emergiu de um partido pró-independência, tornou-se presidente de Taiwan. Durante o mandato de Donald Trump, os Estados Unidos autorizaram uma grande venda de armas e adotaram uma lei que fortalece suas relações com Taiwan.
Pressão
Em 2019, o presidente da China, Xi Jinping (foto), afirmou que desistiria de recuperar Taiwan e alertou Washington para o risco de "brincar com fogo" após uma nova venda de armas à ilha. Em janeiro de 2020, Tsai Ing-wen, reeleita, afirmou que Taiwan é "um país". Em outubro, Xi Jinping pediu ao exército que "se prepare para a guerra".
Recorde de invasões
Em 12 de abril de 2021, aeronaves militares chinesas penetraram na Zona de Identificação de Defesa Aérea de Taiwan (Adiz). De janeiro ao início de outubro, mais de 600 aviões chineses foram detectados naquela área. Em 22 de outubro, o presidente dos EUA, Joe Biden, afirmou que seu país estava pronto para defender Taiwan militarmente no caso de um ataque chinês.