Joseph Julius Maud, 61 anos, olhou em volta e viu muitos outros indígenas em lágrimas, no Parque Muskwa, em Maskwacis, 70km ao sul de Edmonton, capital da província de Alberta (centro-oeste do Canadá). Quando percebeu, também se pôs a chorar. "Esperei tantos anos por isso", afirmou ao Correio o ex-interno da Escola Residencial de Pine Creek, em Manitoba, uma instituição mantida pela Igreja Católica entre 1890 e 1969. Às 11h (14h em Brasília), o papa Francisco pediu perdão "pelo mal que tantos cristãos cometeram contra os povos indígenas" — crianças nativas internas de 139 escolas geridas pelo Vaticano sofreram abusos.
"Estou magoado. Peço perdão pela maneira como muitos membros da Igreja e das comunidades religiosas cooperaram, também por meio da indiferença, nesses projetos de destruição cultural e de assimilação forçada", declarou o pontífice, ao visitar Maskwacis. "O lugar onde nos encontramos ecoa um grito de dor, um clamor sufocado que me acompanhou durante esses meses", acrescentou. O processo de assimilação cultural, classificado por muitos especialistas como "genocídio", provocou a morte de 6 mil menores indígenas, vitimados por doenças, desnutrição, negligência ou abusos.
"Eu aceito seu pedido de desculpas", disse Maud. Segundo ele, o papa foi bem além do que dizer "sinto muito". "Ele quer que a Igreja Católica caminhe com os povos indígenas nesse processo de cura. Foi muito importante ouvir aquelas palavras", comentou. Maud tinha seis anos quando chegou à Escola Residencial de Pine Creek. "Minha língua-mãe era Ojibway. Eu não sabia inglês. Quando eu falava em Ojibway, as freiras me amarravam e me infligiam outros tipos de punição. Comecei a urinar na cama, e as religiosas esfregavam a urina no meu rosto. Era uma experiência horrível, ocorria todas as manhãs e eu me punha a chorar", relatou o sobrevivente, que viajou 16 horas entre Manitoba e Maskwacis para escutar o papa.
O evento reuniu nativos de grupos como Primeiras Nações, Metis e Inuit. Também contou com a presença do premiê canadense, Justin Trudeau, e de Mary Simon, a primeira governadora-geral indígena do país. As lideranças indígenas fizeram uma apresentação de dança e de cânticos de cura para Francisco. Depois, entregaram ao pontífice um imenso cocar de penas, que ele colocou sobre a cabeça.
A jornalista Brandi Morin, integrante da etnia Primeira Nação Michel e autora de Our voice of fire ("Nossa voz de fogo"), também testemunhou o discurso do papa, em Maskwacis. Neta de um sobrevivente, ela ressaltou ao Correio que os povos indígenas canadenses estão em fases distintas de um processo de cura e de reconciliação. "Comunidades ainda desenterram covas de crianças indígenas em várias regiões. Nós experimentamos um estado de luto. Ainda há muito trauma. A cura levará gerações", desabafou Morin.
Ao longo dos anos, ela entrevistou vários indígenas sobreviventes de abusos. "Você ficaria horrorizado em escutar o que essas crianças enfrentaram nessas casas de assimilação do horror. Um dos sobreviventes foi obrigado a cavar o túmulo de um coleguinha, no internato. Os abusos foram disseminados. Uma das escolas chegou a instalar uma cerca elétrica para impedir fugas. Eram campos de concentração", comparou.
"Eu aceito"
Norman Yak'e ula, da etnia Dene, sofreu abusos sexuais, físicos, emocionais e mentais dos 5 aos 14 anos, na Escola Residencial Grollier Hall, em Inuvik, nos Territórios do Noroeste. Aos 63, o indígena disse à reportagem que perdoa o papa. "Eu aceito o pedido de perdão de Francisco, porque ele o fez em nossa própria terra. Ele assistiu à cerimônia dos povos das Primeiras Nações, colocou-se aberto a conversar com os sobreviventes, mas não proferiu o termo 'abuso sexual'. O pedido de desculpas do pontífice se restringiu ao que ele queria dizer." Yak'e ula espera que cardeais, bispos e sacerdotes acolham as palavras de perdão do papa e trabalhem com os indígenas para "deixar o passado para trás e criar um novo futuro de respeito, justiça e reconhecimento".
Hoje, Francisco celebrará uma missa campal no Estádio Commonwealth, em Edmonton, diante de cerca de 65 mil pessoas. Depois, visitará a Igreja do Sagrado Coração dos Primeiros Povos de Edmonton e fará novo discurso para os povos indígenas. Amanhã, o líder católico chegará a Quebec. A viagem pelo Canadá se encerrará na sexta-feira, em Iqaluit (Nunavut), no norte. (RC)