A Europa ainda torra sob as temperaturas extremas de mais um verão típico das mudanças climáticas. Mas, em alguns dos gabinetes do poder, os responsáveis pelo crítico setor de energia já apontam os radares para o horizonte do fim do ano, onde vai tomando forma um inverno que promete dificuldades para milhões de residências — sem falar em setores inteiros da indústria.
Quem assombra os governos da União Europeia é um fantasma que tem o hábito de entrar em cena sempre que a Rússia enfrenta uma guerra — como ocorre desde a invasão da Ucrânia, em fevereiro. Neste início de século 21, o famoso General Inverno se apresenta algo diferente de quando ganhou créditos pela derrota de Napoleão Bonaparte, nos 1800, e de Adolf Hitler, na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O frio, em lugar de castigar tropas estrangeiras na estepe russa, ronda agora os adversários de Vladimir Putin no próprio campo.
A Alemanha, que nas últimas décadas construiu com Moscou uma relação privilegiada para receber gás natural, estuda medidas para fazer frente à possível interrupção permanente do fornecimento. O ministro da Economia, o ecologista Robert Habeck, fez soar o alerta e denunciou o uso da commodity como "arma de guerra". Da perspectiva do Kremlin, trata-se de resposta às seguidas baterias de sanções econômicas e diplomáticas impostas pela UE, assim como pelos EUA e pelos aliados da Otan.
Sabendo usar...
Desde o mês passado, o governo de Berlim se debruça na costura de medidas para contornar o impasse, com base na convicção de que a guerra na Ucrânia não tem solução próxima à vista. Em uma das linhas de ação, começam a tomar forma planos de contingência para reduzir o consumo — ainda alguns passos atrás de um racionamento em sentido estrito. O fornecimento via gasoduto Nordstream 1, que abastece vários países europeus, foi reduzido em junho para 40% da capacidade, a pretexto alegado de problemas na manutenção, comprometida pelas sanções .
Especialistas do setor coincidem na avaliação de que, se a situação não se normalizar em agosto, o governo de Berlim terá de subir o nível de alerta relativo ao consumo de gás para o grau 3 — o mais elevado. Além de encaminhar a economia para uma recessão, a medida terá como resultado o racionamento efetivo em pleno inverno.
...não vai faltar?
Habeck representa os Verdes no governo de coalizão chefiado pelo chanceler Olaf Scholz, do Partido Social Democrata (SPD). Assumiu a pasta da Economia com a missão de acelerar a transição do país à era pós-combustíveis fósseis. Os planos foram atravessados pelo conflito na Ucrânia: de cara, como represália, a Alemanha suspendeu a certificação do gasoduto Nordstream 2, construído com aporte maciço de capital alemão. Em fevereiro, 55% do gás consumido pelo país vinha da Rússia. Hoje, a taxa é ainda de 40%.
Nos próximos meses, Verdes, SPD e os aliados liberais terão de encontrar alternativas de fornecimento para garantir o calor dentro de casa no inverno.
Caso antigo
Desde os anos 1970, sob a batuta do chanceler social-democrata Willy Brandt, a então Alemanha Ocidental adotou como um dos eixos centrais de sua diplomacia a Ostpolitik. A construção de pontes com a hoje extinta União Soviética chegou muito além do propósito imediato de facilitar a convivência com a Alemanha Oriental (comunista) e relaxar tensões da Guerra Fria. Foi decisiva para a queda do Muro de Berlim, em 1989, e a reunificação pacífica da Alemanha, um ano mais tarde.
Desde então, sucessivos governos de Berlim tiveram um olhar estratégico na direção de Moscou, especialmente no terreno econômico, com a pauta energética no centro. Não por acaso, o último social-democrata a ocupar o cargo antes de Scholz, Gerhard Schröder, tornou-se executivo-chefe da gigante russa Gazprom — justamente a responsável pelo Nordstream.
Veio para confundir
Vladimir Putin, que comanda o Kremlin desde o primeiro dia do ano 2000, manobra no campo minado das relações complexas entre os adversários com a desenvoltura de quem construiu na Alemanha dividida a carreira de agente da KGB, misto de agência de espionagem e polícia política na URSS. A Gazprom cortou o fornecimento para Polônia, Bulgária, Holanda, Dinamarca e Finlândia, que recusaram a exigência de pagamento em rublos.
No âmbito da Otan, Moscou conseguiu abrir uma fenda explorando a carta da manutenção do Nordstream 1. O Canadá está sob crítica dos sócios na aliança militar, liderada pelos EUA, por ter aceitado entregar uma turbina russa enviada para reparos em Montreal. Acusado pela Ucrânia de ceder "à chantagem", o premiê Justin Trudeau defendeu a "decisão difícil" tomada por seu governo, reafirmou o apoio a Kiev e renovou a crítica a Putin por "transformar um gasoduto em arma de guerra".
Investindo nas brechas que é capaz de entrever na muralha ocidental, Putin atualiza uma "máxima" cunhada na tevê brasileira pelo inesquecível Chacrinha. O Velho Guerreiro costumava proclamar: "Eu não vim para esclarecer, vim para confundir".