Em janeiro de 2018, a nove meses das eleições presidenciais no Brasil, o livro How democracies die ("Como as democracias morrem") foi publicado pela primeira vez para se tornar best-seller mundial. Aos 54 anos, Steven Levitsky — coautor da obra, com Daniel Ziblatt, e professor de governo e de estudos sobre América Latina na Universidade de Harvard — prepara novo livro, a ser lançado em 2023. "Nele, abordo a ascensão da democracia multirracial. Como os Estados Unidos, desde a década de 1960, se movem em direção a uma democracia mais diversa, inclusiva. Explico como isso levou a uma radicalização dentro do Partido Republicano, que abraça políticas autoritárias. O livro argumenta que a Constituição americana agrava o problema, e, por isso, precisamos de uma reforma para modernizar a Carta Magna", afirmou. Durante 20 minutos, Levitsky deu uma pausa na produção literária e falou ao Correio.
O especialista advertiu que o principal indicador de que a democracia corre perigo é a recusa de forças políticas em aceitarem a derrota eleitoral. Apesar de ver graves ameaças nos EUA e no Brasil, Levitsky assegura que não há meios de salvaguardar a democracia. No entanto, aponta que, ante a ascensão de forças autoritárias — e ele cita o trumpismo e o bolsonarismo —, a classe política tem o dever de criar uma coalizão para isolar a ameaça. De acordo com ele, o mundo assiste à ascensão de uma direita iliberal, descomprometida com valores liberais, e de uma direita centrada no nacionalismo étnico.
Ele admitiu que o ex-presidente norte-americano Donald Trump tem chances de voltar ao poder, em 2024, e alertou que Jair Bolsonaro segue a cartilha do republicano. Para Levitsky, graças à excepcionalidade de uma investigação contra um ex-chefe de Estado, nos EUA, o comitê instaurado pela Câmara dos Representantes para apurar a invasão ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, pode não resultar em condenação de Trump. Levitsky acusou o magnata de se tornar um exemplo para autocratas e disse crer que, no Brasil, Bolsonaro tentará conturbar as eleições de 2 de outubro.
Quais os indicadores de que a democracia está sob ameaça nos EUA e no Ocidente?
No mundo contemporâneo, onde golpes militares à moda antiga e a captura do poder pelo Exército são bem incomuns, os mais preocupantes indicadores são quando grandes forças, movimentos ou partidos políticos se recusam a aceitar os resultados de uma eleição. Esse é, provavelmente, o indicador número um de que a democracia está sob ameaça. Nós vimos isso, infelizmente, tanto nos Estados Unidos, com o Partido Republicano, em 2020, quanto no Brasil, com a nova aliança de Jair Bolsonaro.
Como proteger a democracia?
A dificuldade está no fato de que não existe uma salvaguarda perfeita para a democracia. A democracia é um sistema aberto, por meio do qual, com poucas exceções, muitos pontos de vista devem ser tolerados; em que as eleições são livres, das quais podem surgir demagogos e populistas. É impossível, na democracia, o bloqueio de todas as ameaças de forma segura. A democracia sempre tem que viver com ameaças. Quando uma ameaça emerge, como uma força política autoritária (o trumpismo ou o bolsonarismo, por exemplo), é muito importante que a classe política — os partidos comprometidos com a democracia — se una em uma ampla coalizão para isolá-la e derrotá-la. É extremamente importante que os republicanos, nos EUA, que estejam comprometidos com a democracia, formem uma aliança com o Partido Democrata, para derrotar o trumpismo. No Brasil, é importante que a oposição a Bolsonaro se una, em vez de se fragmentar em direção a vários candidatos. A oposição a Bolsonaro fracassou em fazer isso em 2018.
De que modo a extrema-direita dilapida democracias sólidas ao redor do mundo?
Em muitos países, há a ascensão de uma nova direita iliberal (o iliberalismo se caracteriza pela existência de partidos que corroem a democracia representativa por dentro). Essa direita é menos compromissada com princípios liberais básicos. Está associado a esse fenômeno o surgimento de um tipo de direita baseado no nacionalismo étnico, uma direita iliberal focada em promover ou defender grupos étnicos específicos. Temos visto em Israel, na Índia e nos EUA. A democracia enfrenta desafios, especialmente o crescente descontentamento público. Temos visto esse desafio em todos os lugares, tanto na América Latina, quanto na Europa. Nem todas as democracias estão sob risco. As democracias europeias, como a do Reino Unido, onde (o premiê demissionário) Boris Johnson foi comparado a Trump, estão bem. A ameaça é muito grave no Brasil e nos EUA, mas não significa que ela ocorra em âmbito global.
Bolsonaro tem emitido sinais de que não aceitará o resultado das eleições. Como o senhor vê isso?
Os Estados Unidos e o Brasil seguem um estranho padrão nestes últimos anos. Os EUA deram alguns passos, e o Brasil segue em queda, no mesmo caminho. Bolsonaro foi eleito dois anos depois de Trump. E você sabe... Trump fez a mesma coisa. Antes da eleição, sugeriu que, caso perdesse, alegaria fraude e não aceitaria a derrota. Ele indicou muito claramente o que faria. E o fez. Os brasileiros, infelizmente, seguiram os EUA na escolha de um presidente autoritário, que parece ler o manual de Trump. Bolsonaro tem dado indicações de que fará algo similar ao que Trump fez e não aceitará os resultados das eleições. A coisa mais importante que os defensores da democracia no Brasil podem fazer é pressionar pela criação de uma ampla plataforma anti-Bolsonaro no primeiro turno. Só existe uma forma de quase garantir que Bolsonaro não perturbe as eleições, como Trump fez: infligir a ele uma derrota devastadora no primeiro turno. Todos os candidatos de oposição a Bolsonaro têm que se unir.
Duas semanas atrás, um eleitor de Bolsonaro matou um simpatizante de Lula...
Eu acompanhei isso. Em grandes nações, como o Brasil, a Índia ou os EUA, sempre há chance de um ou outro incidente de violência política. Um incidente não garante nada. Tudo depende da forma com que o governo responde ao crime. É importante que, em uma democracia, todos os principais atores políticos, incluindo o governo, rejeitem atos de violência poítica, sem ambiguidade, e os punam. O risco real para a democracia ocorre quando grandes partidos políticos toleram, perdoam, justificam e promovem esse tipo de violência. Quando grandes partidos e figuras políticas se dispõem a tolerar, a perdoar e a justificar a violência, a democracia fica em perigo. Vimos isso no Chile, na década de 1970; nos EUA, antes da Guerra Civil; na Espanha, nos anos 1930; e no Brasil, na década de 1960. A tolerância da violência política por parte dos grandes partidos políticos é prenúncio para o colapso da democracia.
O que explica o fato de povos de algumas nações não se levantarem pela democracia?
Muitos países não valorizam a democracia e não reagem, de um modo sério, até que eles a perdem. Políticos, ativistas e eleitores se dirigem até o precipício e se engajam em um perigoso comportamento polarizador. Somente após eles perderem a democracia reagem. Isso aconteceu depois que Francisco Franco e Augusto Pinochet tomaram o poder, respectivamente, na Espanha e no Chile. Também depois do golpe de 1964, no Brasil. As pessoas tendem a subestimar a chance de perderem a democracia, assim como o custo de perdê-la.
Que influência Trump exerceu sobre as democracias?
Trump produziu danos ao ambiente global da democracia. Mais do que qualquer presidente desde Richard Nixon, Trump abandonou qualquer pretexto para promover a democracia. Sob o governo Trump, os EUA abraçaram alegremente ditadores e fizeram muito pouco para defender a democracia. Os EUA sempre foram um modelo para democratas de outras partes do mundo. Isso acabou sob a presidência de Trump. Ditadores olharam para Trump e começaram a atacar a mídia e os adversários, porque Trump o fez. Jair Bolsonaro começou a copiar Donald Trump e se recusa a aceitar o resultado das eleições. De repente, o presidente dos EUA tornou-se um modelo para autocratas. Sim, Trump teve um impacto negativo significativo para as democracias globais.
Trump ainda é capaz de retornar ao poder?
Trump tem chances de retornar à Casa Branca por três razões. A primeira delas é que Trump continua a ser uma figura apoiada pelo Partido Republicano. O sistema político norte-americano é bipartidarista. Se você é lider de um partido, você sempre tem chances. A segunda delas é que as condições impostas nos EUA, assim como no Brasil, com a inflação em alta, a economia instável e os efeitos da pandemia, fazem com que as pessoas se sintam infelizes. E as pessoas estão no governo. Quando os cidadãos têm a chance de votar, acabam por votar contra o governo. Nesse momento, os norte-americanos estão se voltando contra Joe Biden, por causa do descontentamento. A insatisfação se volta contra Biden. O sistema baseado no Colégio Eleitoral favorece o Partido Republicano. Trump pode perder no voto popular, mas pode, ainda assim, ganhar.
Em relação ao comitê instalado na Câmara dos Representantes para investigar a invasão ao Capitólio, quais as chances de uma punição efetiva a Trump?
Por um lado, parece muito claro que o comitê demonstra, muito claramente, que Trump se engajou em um comportamento criminoso e antidemocrático. Por outro lado, não existe precedente nos EUA para processar um ex-presidente, com potencial para ser candidato. Vocês, brasileiros, enfrentaram a mesma situação com Lula, em 2018. É muito complicado investigar e colocar atrás das grades um candidato capaz de ganhar as eleições. Isso seria interferir no processo eleitoral. Há um medo, entre muitas pessoas do establishment norte-americano de que, caso processem Trump por motivos corretos e legítimos, isso seja percebido como um gesto politizado.
O senhor vê o risco de o Brasil assistir a uma repetição do ataque ao Congresso norte-americano?
A qualquer momento, em uma democracia presidencialista, quando se elege uma figura autoritária e se coloca essa figura na Presidência, põe-se a democracia em risco. A cada dia restante do governo, a democracia estará em perigo. Há risco de que Bolsonaro tente usar a violência para criar uma crise, a fim de reverter o resultado das eleições. Se será bem-sucedido ou não, quem sabe? Mas ele tentará.
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