Ao retirar-se da América Central em 1981, o Reino Unido deixou sem resolver uma disputa fronteiriça centenária que segue pendente entre Belize e a Guatemala.
O caso chegou a ser levado ao Tribunal Internacional de Justiça de Haia, na Holanda, onde as duas nações apresentaram suas versões de uma questão de fronteiras que já dura mais de 160 anos.
Desde o século 19, os dois territórios vivem uma intensa disputa que envolve quase 12 mil quilômetros quadrados, incluindo suas ilhas, grandes e pequenas, além de zonas marítimas reivindicadas pela Guatemala que Belize entende que são parte do seu território.
Ao apresentar sua resposta à reivindicação guatemalteca em Haia no início de junho, Belize defendeu que a questão é de integridade territorial e que fará todo o possível para preservar sua soberania sobre o que o país considera seu território nacional.
"Os belizenhos podem ter a certeza de que foram apresentados argumentos claros e contundentes em defesa da nossa soberania territorial, bem como sobre as áreas marítimas, conforme determina o direito internacional", afirmou em declaração institucional o primeiro-ministro de Belize, John Briceño.
Os dois países decidiram apresentar o caso ao Tribunal de Haia após dois plebiscitos - o primeiro na Guatemala, em 2018, e o segundo no ano seguinte, em Belize. No final de 2020, o governo guatemalteco levou a Haia o texto da sua reivindicação, composto por oito volumes e um total de 4.813 páginas.
Belize apresentou seus documentos em junho e, segundo o cronograma anunciado pelo tribunal, a réplica da Guatemala deve ser enviada em dezembro de 2022. Belize terá então até junho de 2023 para apresentar seus argumentos finais e o Tribunal definirá a data das audiências presenciais.
O tamanho da região em disputa representa quase a metade do território atual de Belize.
Por estar em litígio, grande parte da região não é adequadamente sinalizada ou vigiada. Por isso, é também uma das áreas fronteiriças mais inseguras da América Central, permeada pelo narcotráfico, tráfico de espécies e outros tipos de contrabando.
Mas qual é a origem da disputa entre esses dois países? E por que o Reino Unido é acusado de estar por trás do problema?
As origens
Na sua reivindicação de 2018, a Guatemala indicou que estava pleiteando "todos os direitos herdados da Espanha" no momento da sua independência, em 1821. Mas as bases do conflito, na verdade, remontam a 1783, quando a coroa espanhola autorizou os ingleses a cortar árvores na parte norte do território, agora ocupada por Belize.
A fronteira entre Belize e Guatemala é palco de reivindicações territoriais há mais de 160 anos.
Na época, a América Central fazia parte do vice-reino da Nova Espanha, uma entidade territorial integrante do império espanhol. Mas as disputas entre a Espanha e a Inglaterra causavam inúmeros confrontos nos dois lados do Atlântico.
No mar do Caribe, piratas ingleses atacavam os navios espanhóis e se refugiavam no litoral que hoje pertence a Belize. Para formar um pacto que evitasse esses ataques, a Espanha outorgou à Coroa britânica duas concessões, em 1783 e 1786, para extrair madeiras valiosas naquele território.
Mas, enquanto a Espanha se ocupava com a guerra da independência na América Central, o assentamento britânico foi se ampliando. Até que, em 1821, quando a região deixou de pertencer à Espanha, a colônia britânica já ocupava o território que hoje forma Belize.
Dezenas de milhares de ingleses - comerciantes, traficantes de pessoas escravizadas, navegadores e aventureiros, muitos em busca de fortuna - já haviam chegado à região, que foi chamada de "Honduras Britânicas".
Novos limites
Foi um período turbulento. Depois da guerra contra a Espanha, a Guatemala enfrentou outra disputa territorial, desta vez com o México, que pretendia ficar com a região onde hoje fica o departamento guatemalteco de Petén, no norte do país.
A disputa fez com que o governo guatemalteco deixasse de lado a silenciosa expansão britânica no leste para concentrar-se na manutenção do território reivindicado pelo seu vizinho do norte. Mas, quando o conflito com o México se aproximou do seu final, a Guatemala voltou sua atenção para a região ocupada pela Coroa britânica.
Em 1850, britânicos e americanos assinaram o Tratado Clayton-Bulwer, segundo o qual as duas nações comprometeram-se a não ocupar, colonizar nem fortificar nenhum território na América Central.
Mas, no seu acordo com os Estados Unidos, o Reino Unido alegou que o território de Belize havia sido concedido em usufruto pela Espanha. E, embora Washington não tenha reconhecido na época os direitos britânicos sobre o território, o status da colônia foi mantido.
Foi ali que começou o que a imprensa da época chamou de "traição" britânica: uma série de tratados e compromissos assinados pelo Reino Unido, que nunca foram cumpridos.
Os tratados
Em 1859 e depois de inúmeros protestos e ações diplomáticas, Guatemala e Reino Unido assinaram o tratado Aycinema-Wyke.
Segundo esse tratado, a Guatemala concordou em ceder uma parte do território ocupado pelos britânicos. Em troca, havia uma compensação: a construção de uma estrada que saísse da capital da Guatemala até o mar do Caribe, a ser paga pelos britânicos.
Mas essa promessa nunca foi cumprida. O Reino Unido nunca construiu a estrada, o que provocou mal-estar na Guatemala.
As autoridades guatemaltecas convocaram novas rodadas de conversas com os britânicos. Até que, em uma convenção de 1863, o Reino Unido - uma das principais potências mundiais da época - comprometeu-se a pagar o montante de 50 mil libras esterlinas, que era o custo calculado de construção da estrada prevista no acordo de 1859.
Mas, novamente, os britânicos não cumpriram o acordo, e nenhum centavo do Reino Unido entrou nos cofres da Guatemala.
O século seguinte
A discussão voltou a ser tema de conflito no século 20 e chegou até a Liga das Nações, organização precursora da Organização das Nações Unidas (ONU).
Na década de 1930, a Guatemala propôs uma nova solução para a disputa. Ela apresentou uma série de propostas, que incluíam desde a devolução do território cedido pela Coroa espanhola mais o pagamento de 400 mil libras esterlinas, até o mesmo montante em dinheiro e uma faixa de território que garantisse à região de Petén uma saída para o mar.
Mas o Reino Unido não aceitou nenhuma das propostas e seguiu postergando por anos qualquer discussão a respeito.
Até que, em 1946, durante o primeiro mandato do presidente Juan José Arévalo Bermejo, o Congresso da Guatemala declarou nulo, unilateralmente, o pacto de 1859, já que o Reino Unido "não cumpriu o que foi estipulado".
Os dois países decidiram levar a questão ao recém-criado Tribunal de Haia, mas tudo se complicou porque eles não chegaram a um acordo sobre os termos e procedimentos legais a serem seguidos.
Por fim, o processo foi suspenso quando Belize tornou-se independente do Reino Unido, em 1981. A Guatemala somente viria a reconhecer a independência do país vizinho uma década depois.
O novo debate
Em suas sucessivas constituições, a Guatemala reafirmou ao longo do século 20 que declarava "Belize parte do seu território" e que considerava "de interesse nacional as iniciativas destinadas a conseguir sua efetiva reincorporação à República".
Por isso, o reconhecimento da independência do novo país também se tornou uma dor de cabeça. Afinal, o Reino Unido saía de cena e deixava sem resolver um problema iniciado um século antes.
O Reino Unido havia mantido na antiga colônia uma força de dissuasão - as forças Britânicas de Belize, ou "BritForBel" - para proteger o território de uma possível invasão da Guatemala e manteve suas tropas no país por mais alguns anos.
As Forças Britânicas de Belize somente se retirariam em 1994, mas o país centro-americano até hoje é utilizado pelos britânicos como centro de treinamento para a guerra na floresta.
Essa situação delicada fez com que as autoridades guatemaltecas somente reconhecessem a independência do país vizinho em 1991, quando o então presidente Jorge Serrano reconheceu o direito de Belize à autodeterminação, soberania e eleição do seu governo pelos belizenhos. Mas ele não reconheceu o território onde fica o país.
De sua parte, Belize aceitou que seu vizinho reivindicava ter direitos sobre o seu território e concordou em prosseguir com as negociações e consultas para levar o caso ao Tribunal de Haia, que agora irá julgar o processo.
- Texto originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-62068454
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