Assim que chegou ao Palácio Real Al-Salam, na cidade de Jidá, às margens do Mar Vermelho, Joe Biden cerrou os punhos e estendeu os braços em direção ao anfitrião, o príncipe saudita Mohammed bin Salman (MBS), que fez o mesmo. O presidente dos Estados Unidos e o homem acusado de instigar o esquartejamento do jornalista dissidente Jamal Khashoggi, em 2 de outubro de 2018, se cumprimentaram com um "soquinho", antes de um encontro que durou quase três horas. Ao fim da reunião, o também jornalista Peter Alexander, correspondente da NBC News na Casa Branca, gritou para Bin Salman: "Você vai se desculpar com a família de Khashoggi?". Após o impacto da foto da saudação rapidamente divulgada por Riad, Biden assegurou que abordou o assassinato "no topo do encontro bilateral" e relatou ter dito ao príncipe que o considera responsável pela execução do jornalista.
"O que aconteceu com Khashoggi foi escandaloso. Deixei claro que, se voltar a ocorrer algo assim, haverá uma resposta e muito mais", comentou o democrata. "Deixei claro sobre o que eu pensava na época e o que penso neste momento. Fui direto e coloquei meu posicionamento claramente. (...) Eu disse a ele que um presidente norte-americano permanecer calado em relação aos direitos humanos seria inconsistente com quem nós somos e com quem eu sou. Sempre me levantarei em defesa de nossos valores", declarou Biden. Ele contou aos repórteres que MBS afirmou-lhe não ter sido "pessoalmente" responsável pela morte de Khashoggi. "Eu indiquei a ele que achava que sim. Ele disse que agiu contra aquelas pessoas que foram responsáveis (pelo crime)."
Hatice Cengiz, noiva de Khashoggi, disse que Biden tem "as mãos sujas de sangue". Ela usou o perfil do colunista do jornal The Washington Post para tuitar como se ele estivesse vivo. "É essa a forma de prestar contas que você prometeu pelo meu assassinato? Você carrega em suas mãos o sangue da próxima vítima de MBS", escreveu. Às 16h50 de ontem, Hatice falou ao Correio e não poupou críticas ao norte-americano.
Ao ser questionado por um jornalista sobre as palavras da noiva de Khashoggi, Biden respondeu: "Eu sinto muito que ela se sinta assim, eu fui direto naquela época e fui direto agora". Ele garantiu não se arrepender de nenhuma declaração sobre o caso Khashoggi. Quando candidato à Casa Branca, Biden tinha prometido manter o status de "pária" da Arábia Saudita. Após a eleição, tornou público um relatório secreto que acusava MBS de envolvimento na conspiração para assassinar o colunista.
Fred Ryan, editor do Washington Post, considerou que "o soco entre o presidente Biden e Mohammed bin Salman foi pior do que um aperto de mão — foi vergonhoso". "Ele projetou um nível de intimidade e conforto que entrega a MBS a redenção injustificada que ele procura desesperadamente", desabafou.
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Petróleo
Apesar da abordagem do tema dos direitos humanos, o assunto mais estratégico da viagem de Biden é o petróleo, no momento em que a guerra entre a Rússia e a Ucrânia ameaça a redução de oferta do combustível e a inflação atinge 9,1% em 12 meses nos EUA — o patamar mais alto desde 1981. Norte-americanos e sauditas firmaram vários acordos, como a expansão do suprimento do petróleo, a construção de redes de telecomunicações 5G e a ampliação da trégua no Iêmen.
Professor de Estudos do Oriente Próximo e diretor do Instituto de Estudos Transregionais da Universidade de Princeton, Bernard Haykel acompanhou, em Jidá, a visita de Biden. Por telefone, ele disse à reportagem que a ida do presidente norte-americano ao reino é um sinal de que "os EUA reconhecem a importância da Arábia Saudita como ator nos temas globais, na economia e na questão energética". "A viagem reverte a posição de Biden em relação ao regime de Riad. Mas a visita surtirá resultados tímidos. Não creio que muitas coisas concretas possam surgir dela. Por exemplo, não acho que os sauditas aumentarão a produção de petróleo para atender a uma demanda dos Estados Unidos nem condenará a Rússia pela invasão à Ucrânia", disse. Em relação ao Irã, Haykel explicou que, com o fracasso do acordo nuclear, Estados Unidos e Arábia Saudita precisarão reavaliar a sua posição sobre Teerã.
Para ele, o cumprimento entre Biden e o príncipe MBS deve ser interpretado como um gesto "apropriado" dentro do protocolo de prevenção à covid-19. Por sua vez, Mohammed Alyahya, especialista da Iniciativa sobre Oriente Médio do Centro Belfer da Universidade de Harvard, classifica a viagem do democrata como um fato importante. "Ela traz clareza não apenas para os EUA e para a Arábia Saudita, em nível bilateral, mas também em âmbito multilateral, entre os países-membros do CCG. Os atores regionais buscam clareza sobre como os EUA veem sua arquitetura de segurança na região. Ela afastará o Oriente Médio em direção à China? Forçará a um realinhamento com o Irã?", questionou ao Correio, por e-mail.
De acordo com Alyahya, uma relação ruim entre Riad e Washington é prejudicial para ambas as nações. "O assassinato de Khashoggi foi um crime hediondo, que foi amplamente condenado pela Arábia Saudita. Os próprios sauditas tomaram medidas para garantir que algo assim nunca volte a ocorrer", comentou o especialista.
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Três perguntas para
Hatice Cengiz, noiva do jornalista Jamal Khashoggi, assassinado e esquartejado dentro do Consulado da Arábia Saudita em Istambul, em 2 de outubro de 2018
Qual foi a reação da senhora ao ver a imagem do presidente Biden cumprimentando o príncipe Mohammed bin Salman com um "soquinho"?
É uma imagem decepcionante, que mostra que o negócio está além de todos os nossos esforços para buscar a justiça. O cumprimento de ambos, infelizmente, mina fortemente os esforços de todas as pessoas que lutam por nossa ética e pela moral.
No passado, Biden acusou Bin Salman de ser um pária, após o assassinato de Khashoggi. Como a senhora vê essa mudança de mentalidade do presidente dos EUA?
Ele alegou que era um democrata diferente durante sua campanha presidencial. No entanto, ao quebrar sua promessa (de buscar justiça), mostrou que não era.
Se pudesse, o que diria para Biden depois desse encontro de hoje (ontem)?
Eu diria a ele: "O senhor, presidente, deve justiça a Jamal".
Barbárie no consulado em Istambul
Jamal Khashoggi, 59 anos, colunista do jornal The Washington Post e crítico do regime saudita, foi assassinado e esquartejado por um esquadrão da morte, em 2 de outubro de 2018, no consulado saudita em Istambul, na Turquia. Ele havia comparecido à representação diplomática para recolher os documentos necessários para se casar com a noiva turca, Hatice Cengiz. Khashoggi teria sido sufocado com um saco plástico e decapitado, antes do esquartejamento.