Era uma vez um primeiro-ministro que ousou tentar ser como Winston Churchill — premiê por duas vezes (1940-1945 e 1951-1955) —, mas acabou traído por seus próprios erros e se viu engolido por uma revolta dos aliados. Às 12h30 de ontem (7h30 em Brasília), Boris Johnson não resistiu à pressão interna. Diante de Downing Street, residência do governo, ele renunciou à liderança do Partido Conservador e afirmou que ficará no cargo até a escolha de um novo primeiro-ministro. Até que isso ocorra, Johnson não contará com apoio para tomar decisões fiscais nem para implementar novas políticas. "É claramente a vontade da bancada parlamentar que deve haver um novo líder daquele partido e, portanto, um novo primeiro-ministro", declarou Johnson.
Sem demonstrar emoção, ele atacou os membros do próprio Partido Conservador, depois que mais 60 assessores e ministros pediram demissão. "Como temos visto em Westminster, o rebanho é poderoso. E quando o rebanho se move, ele se move... E, meus amigos, na política ninguém é remotamente indispensável", afirmou.
Boris Johnson caiu em desgraça depois da nomeação de Chris Pincher para um cargo parlamentar importante. Pincher, um conservador, confessou ter apalpado dois homens, entre eles um deputado, em um clube privado, no centro de Londres. A própria Downing Street reconheceu que Johnson sabia de acusações contra Pincher, mas tinha se "esquecido" delas quando o nomeou.
A eleição interna no Partido Conservador para substituir Johnson somente deve ocorrer a partir de outubro. No fim da noite, o presidente do Comitê de Relações Exteriores da Câmara dos Comuns, Tom Tugendhat, foi o primeiro conservador a oficializar a candidatura. Mais cedo, ele elogiou Johnson por renunciar e citou os feitos do premiê. "Ele entregou o Brexit (divórcio com a União Europeia), impulsionou as vacinas e liderou sobre a Ucrânia. Agora, precisamos de um começo limpo", pediu, nas redes sociais.
Uma pesquisa feita pelo instituto YouGov com membros do partido, ontem, indica algumas tendências de candidatos. Ben Wallace, 52 anos, ministro da Defesa, venceria todos os outros potenciais adversários. Atrás dele, aparecem como bem cotados a secretária de Estado do Comércio Exterior, Penny Mordaunt, 49. O líder do opositor Partido Trabalhista, Keir Starmer, classificou a renúncia de Johnson como uma "boa notícia", mas defendeu uma "verdadeira mudança de governo". Ele não descarta pedir a apreciação de uma moção de censura para forçar a convocação de eleições gerais antecipadas.
Especialista em Constituição pela Faculdade de Política Pública da University College London, Robert Hazell admitiu ao Correio que o Reino Unido enfrenta uma crise de liderança desde 2010. "Houve um fracasso de comando com os premiês David Cameron, Theresa May e, agora, com Johnson", disse. Ele apontou os principais problemas do chefe de governo demissionário. "Eu diria que a falta de integridade e o desafio às convenções; o que significa que ninguém podia acreditar nele."
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Dupla votação
De acordo com Hazell, o processo para a eleição do novo líder do Partido Conservador envolve duas etapas. "Em primeiro lugar, os parlamentares realizam uma série de exaustivas votações para escolherem os dois principais candidatos. Depois, os membros do partido escolhem um dos dois candidatos. O processo todo leva pelo menos dois meses", comentou. Na opinião dele, além de Ben Wallace e de Peny Mordaunt, o ex-ministro da Defesa Rishi Sunak e a chefe da diplomacia britânica, Liz Truss, também são fortes nomes.
Após a renúncia de Johnson, Truss publicou um tuíte a partir da Indonésia, onde participará de uma reunião do G20, e instou o Reino Unido a agir com tranquilidade. "Precisamos de calma e unidade agora e continuar governando, até que um novo chefe do partido seja nomeado", declarou.
Diretor do Departamento de Economia Política do King's College London, Andrew Blick prevê tempos turbulentos. "Nós veremos quatro primeiros-ministros em pouco mais do que seis anos. Essa rotatividade está relacionada a tensões dentro do Partido Conservador. O Brexit, supostamente, era supostamente para resolver tais disputas; mas os sinais são de que elas se agravaram. Em 2019, Johnson foi escolhido líder porque julgaram ser ele a única pessoa capaz de reconciliar as diferenças e ganhar uma eleição", disse ao Correio.
Para Blick, os principais fracassos de Johnson foram a incapacidade em conter suas próprias fraquezas e em agir de acordo com as regras. "Provavelmente, isso era algo inevitável, ante a personalidade dele", admitiu. O estudioso considera difícil prever quem são os potenciais nomes a ocupar 10 Downing Street e cita a existência de questões complexas envolvendo as prioridades dos conservadores que votam.
Por sua vez, Nick Turnbull, professor de política da Universidade de Manchester, criticou Johnson por levar apenas partes do trabalho a sério. "Faltou-lhe inteligência política em cultivar um apoio político suficientemente amplo na bancada parlamentar. Tudo isso somado a um mandato muito curto, de apenas alguns anos, e uma partida ridícula", avaliou à reportagem. Turnbull aponta o acordo do Brexit como o principal legado de Johnson. "Para os adeptos do divórcio com a União Europeia, foi um grande sucesso. Mas, se observarmos os dados econômicos, veremos que o Brexit não pareceu exitoso."
O presidente dos EUA, Joe Biden, assegurou que Washington manterá uma "cooperação estreita" com Londres. "O Reino Unido e os EUA são os amigos e aliados mais próximos, e a relação especial entre os nossos povos continua sendo forte e duradoura", afirmou o democrata, em nota que não mencionou Johnson.