A esquerda faz história

Senador e ex-guerrilheiro Gustavo Petro derrota o milionário populista Rodolfo Hernández e se torna o primeiro esquerdista a governar o país, que também terá uma mulher negra como vice. Presidente eleito propõe acordo nacional

Rodrigo Craveiro
postado em 20/06/2022 00:01
 (crédito: Arquivo pessoal )
(crédito: Arquivo pessoal )

A primeira manifestação como presidente eleito da Colômbia veio pouco depois das 17h de ontem (19h em Brasília), minutos após ser proclamado o vencedor do segundo turno das eleições. "Hoje é dia de festa para o povo. Que festeje a primeira vitória popular. Que tantos sofrimentos sejam aliviados na alegria que hoje inunda o coração da Pátria. Esta vitória é para Deus, para o povo e para sua história. Hoje é dia das ruas e das praças", escreveu no Twitter Gustavo Petro. O economista, ex-senador e ex-guerrilheiro de 62 anos fez história ontem, ao levar a esquerda pela primeira vez ao Palácio de Nariño. Até o fechamento desta edição, com 99,99% das urnas apuradas, Petro obteve 11.281.002 (50,44%) contra 10.580.399 (47,31%) para o engenheiro milionário Rodolfo Hernández, um populista outsider de 77 anos adotado pela direita.

A ativista ambiental e advogada Francia Márquez, 40 anos, será a primeira mulher negra a ocupar a vice-presidência do país. Petro e Márquez serão empossados em 7 de agosto. "Obrigada, Colômbia, por esse momento histórico", declarou Márquez, às 21h30 (hora de Brasília) de ontem, em seu discurso de vitória. Ela dedicou as palavras aos líderes sociais assassinados, aos estudantes desaparecidos e às milhares de mulheres violentadas. "Obrigada por plantarem a semente da resistência e da esperança", disse a vice. "Depois de 214 anos, conseguimos um governo do povo, um governo dos 'ninguéns' da Colômbia. Vamos reconciliar essa nação, vamos pela justiça social. Vamos pelas mulheres, erradicar o patriarcado desse país (...) Sou sua vice-presidente."

Quinze minutos depois, Petro tomou o microfone e disse que o povo escreve uma nova história para o país, a América Latina e o mundo. "O que ocorreu aqui, hoje (ontem), com esses 11 milhões de eleitores e eleitoras, é uma mudança. Aqui, o que vocês veem é uma mudança de verdade, real. Não trairemos esse eleitorado que gritou à nação e à história. A partir de hoje, a Colômbia muda. A Colômbia é outra, uma transformação real. É a política do amor", afirmou o presidente eleito. "A mudança consiste em abandonar o ódio e o sectarismo."

Em uma das primeiras medidas como chefe de Estado eleito, Petro pediu à procuradora-geral da República que liberte os jovens presos nas manifestações. "Este governo que começará em 7 de agosto é um governo da vida." Ele garantiu que os mais de 10 milhões de eleitores de Hernández são "bem-vindos". 

Pouco antes, o próprio Hernández reconheceu a derrota e sinalizou um gesto de reconciliação. "Telefonei para Gustavo a fim de parabenizá-lo pela vitória e oferecer-lhe meu apoio para cumprir com as promessas de mudança, pelas quais a Colômbia votou hoje (ontem). A Colômbia sempre contará comigo", declarou, pelo Twitter.

Professor emérito da Universidad Externado de Colombia (em Bogotá), Andres Macías Tolosa afirmou ao Correio que a eleição de ontem envolveu dois candidatos que representavam uma ruptura com a política tradicional. "A vitória de Petro muda a tendência vista na Colômbia nas últimas décadas. É prematuro saber o que esperar. Petro iniciará um processo de revisão de seu plano de governo, ao analisar todas as novas propostas recebidas por sua campanha ao longo das últimas semanas. Será interessante ver a relação entre o novo governo e os integrantes do novo Congresso da República, que tomarão posse em 20 de julho", comentou o especialista.

Alejandro Bohorquez-Keeney, professor de governo na mesma universidade, avalia a eleição de Petro como o fim do uribismo como força política. "Os votos que Federico 'Fico' Gutiérrez, apoiado pelo ex-presidente Álvaro Uribe, recebeu no primeiro turno não alcançaram Hernández. Sob o prisma da democracia ou da poliarquia, a eleição do primeiro líder de esquerda na Colômbia é algo positivo, ante a alternância de poder", disse à reportagem. Alejandro alerta que Petro terá vários desafios pela frente. "O programa de governo dele é muito ambicioso. Provavelmente, em quatro anos ele não conseguirá cumprir com tudo o que pretende fazer", acrescentou. 

Andrés Felipe Ortega Gómez, cientista político da Pontificia Universidad Javeriana e da Universidad El Bosque (em Bogotá), ressaltou ao Correio que esta é a primeira alternância real de poder. "Foi a terceira tentativa de Petro de chegar ao poder. A façanha ocorreu no país mais conservador da América Latina, nos âmbitos político e social, apesar de avanços importantes em temas ambientais e de luta de gêneros", disse. Ele destaca a importância de Petro ter escolhido como vice uma mulher negra, que trabalhou como doméstica, foi mãe solteira e simboliza uma Colômbia das pessoas que não se sentem representadas, os "ninguéns". 

Ainda segundo Gómez, o eleito entendeu a necessidade de fazer concessões ao governo. "Petro não se coloca necessariamente como um líder anti-establishment. Ele trabalhou para o Estado, foi prefeito de Bogotá e senador da República por três mandatos. Vejo como um ponto de inflexão a primeira vez que a esquerda ganha em meu país. Não é algo pequeno", observou. Ele crê que a vitória de Petro está associada ao processo de paz. "Petro é um ex-guerrilheiro do grupo M-19, que se desmobilizou na década de 1990. Esse fato provoca resistência em muitas pessoas, pois a Colômbia tem um processo muito difícil de Justiça transicional", comentou Gómez. 

Reações

Mandatários e personalidades de esquerda na América Latina não tardaram em celebrar a vitória de Petro. O ex-presidente e pré-candidato Luiz Inácio Lula da Silva tuitou na noite de ontem: "Felicito calorosamente os companheiros Gustavo Petro e Francia Márquez, e todo o povo colombiano pela importante vitória nas eleições deste domingo. Desejo sucesso a Petro em seu governo. A sua vitória fortalece a democracia e as forças progressistas na América Latina."

O presidente da Argentina, Alberto Fernández, se disse tomado de alegria. "Acabo de transmitir ao presidente eleito minhas felicitações pela confiança que o povo colombiano depositou nele", reagiu. O chefe de Estado chileno, Gabriel Boric, também telefonou para Petro. "Alegria para a América Latina! Trabalharemos juntos pela unidade de nosso continente", disse. Até o fechamento desta edição, nem o presidente Jair Bolsonaro nem o Itamaraty tinham se pronunciado.

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