Violência

'Não teria escolhido ser professora nos EUA se soubesse que teria que dar aulas armada'

Congresso do Estado de Ohio aprovou uma lei controversa em 1º de junho, que permitirá aos professores e outros funcionários carregar armas na escola

BBC
Analía Llorente - BBC News Mundo
postado em 15/06/2022 08:36
 (crédito: Arquivo pessoal)
(crédito: Arquivo pessoal)

O ataque a tiros contra uma escola primária em Uvalde, no Estado americano do Texas, que deixou 21 mortos — 19 crianças e dois professores — em 24 de maio, reacendeu o debate sobre as possíveis medidas para acabar com a violência em instituições de ensino daquele país.

O Congresso do Estado de Ohio reagiu rapidamente e aprovou uma lei controversa em 1º de junho, que permitirá aos professores e outros funcionários carregar armas na escola.

A regra anula uma decisão da Suprema Corte estadual de 2021, que exigia que os professores recebessem treinamento com armas equivalente ao recebido pelos policiais.

Se o governador assinar a lei, os professores que voluntariamente optarem por portar armas nas escolas serão obrigados a completar apenas um treinamento de 24 horas.

Homenagem às vítimas da Robb School, em Uvalde, Texas
Reuters
Homenagem às vítimas da Robb School, em Uvalde, Texas

Os legisladores também aprovaram um pacote de US$ 105 milhões destinado a prevenir tiroteios em escolas.

A BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC, perguntou à professora portorriquenha Rosa Morales Cruz, que ensina espanhol como segunda língua há uma década em Cleveland, no Estado de Ohio, o que ela acha dessas políticas. Cruz também é diretora-executiva para questões educacionais do sindicato dos professores daquela cidade.

Rosa Morales Cruz.
Arquivo pessoal

BBC News Mundo — Após este último ataque a tiros no Texas, a Sra. tem medo de dar aulas?

Rosa Morales Cruz — Não, porque criamos um ambiente positivo na escola. Assumimos a responsabilidade de evitar essas situações, construindo uma boa conexão com nossos alunos. Então, não tenho medo de eles atacarem a escola.

É muito terrível e lamentável o que aconteceu no Texas, mas acredito que é necessária uma conexão entre a comunidade, a escola e os alunos para que eles se sintam bem e episódios como esse sejam evitados.

Meu medo é que não nos sentimos seguros em geral. Esses eventos não ocorreram apenas nas escolas. Estão acontecendo no cinema, nas praças, nos shoppings, nas igrejas, nos hospitais, nos lugares onde você tem que se sentir seguro.

BBC News Mundo — Armar professores é uma boa solução?

Cruz — Em hipótese alguma.

Armar os professores é uma péssima ideia. Já temos a preocupação de atender aos padrões exigidos pelo Estado, que são, por exemplo, garantir que os alunos tenham um nível de leitura adequado.

Nosso dever como professores é educar os alunos. Se tivessem me falado que para ser professor é preciso estar armado, não teria me tornado professora.

Hoje nós professores nos tornamos psicólogos, pais de nossos alunos, cozinhamos quando estão com fome, somos médicos... O papel do professor não é simplesmente o de um professor. Eles continuam exigindo cada vez mais de nós e isso nos esgota.

É muito triste porque já se pede tanto ao professor, e agora também somos obrigados a portar uma arma.

O governo é rápido em montar um plano e dar os recursos necessários para ter essa formação, mas não os recursos necessários para que nossos alunos tenham os recursos para uma boa educação.

Estamos falando de treinar indivíduos em uma área educacional para portar armas mortais. Se quisesse treinar para matar ou proteger, teria ido para a área militar.

Já temos um protocolo caso algo assim aconteça e sabemos o que fazer. Mas carregar uma arma durante as horas em que estamos em nosso ambiente educacional é perigoso.

Você consegue imaginar um estudante roubando nossa arma ou brigando conosco para pegá-la? Ou se deixarmos a arma sem vigilância por um momento e outra pessoa a pega? Ou que a escola pode se tornar um campo de batalha?

Você não pode consertar um problema de arma com mais armas.

Dizer aos professores que eles precisam ter armas para proteger os alunos e evitar ataques a tiros em massa é como dizer às vítimas que coloquem mais roupas para não serem estupradas.

O problema não é a vítima. O problema é a lei que temos pela qual as pessoas adquirem armas. Por que um estudante de 18 anos pode comprar armas, mas não álcool?

Homenagem às vítimas da Robb School, em Uvalde, Texas
EPA

BBC News Mundo — Se o governador promulgasse essa lei, a Sra. se sentiria obrigada a portar uma arma?

Cruz — Não. Eu deixaria de ser professora.

E isso me obrigaria a tirar meus filhos da escola pública e colocá-los em uma escola particular onde sei que existe um sistema de segurança com pessoas treinadas para proteger meus filhos e que os professores podem ensinar e dar a educação que eles merecem.

É tão triste que nossos jovens hoje vejam tanta atividade armada na comunidade e agora eles também têm que ver seu professor carregando armas.

Não acho que isso faz um aluno se sentir seguro, mas faz com que eles se perguntem: por que ele está carregando uma arma? Estarei seguro nesta escola?

Rosa Morales Cruz.
Arquivo pessoal

BBC News Mundo — A Sra. conhece professores que apoiam essa ideia de dar aulas armados?

Cruz — Não. Faço parte do sindicato dos professores e do comitê executivo do distrito escolar, e nenhum professor está disposto a ter armas na escola.

Mesmo aqueles que têm armas em suas casas dizem que não se sentem seguros trazendo suas armas para cá.

Acredito que não estaríamos preocupados em educar nossos alunos, mas, sim, preocupados com nossa arma. Eles são uma distração em um ambiente que deveria ser positivo e acolhedor.

(O raciocínio é) eu carregar uma arma porque se alguém vier, eu vou te proteger. Mas essa pessoa não deve vir à minha sala de aula. As áreas de entrada e saída são as que devem ser protegidas. A polícia é necessária em torno das escolas para garantir que isso não aconteça.

BBC News Mundo — E por que a Sra acha que para muitas pessoas, incluindo legisladores, armar professores é a solução?

Cruz - Recentemente, houve um ataque a tiros a um hospital. Pediram aos médicos que passassem a portar armas? Não. Os hospitais receberam mais policiamento e segurança.

Por que esses governantes gostam de armas e buscam uma solução rápida sem estudos, sem análises e sem provas?

Eles criam leis que não os afetam. Eles não são as pessoas que estão dentro das salas de aula ouvindo as histórias e os traumas que nossos alunos vivenciam.

BBC News Mundo — O que a Sra. pediria às autoridades?

Cruz — Peço às autoridades governamentais que implementem este programa que estão impondo aos professores do departamento de segurança do sistema educacional.

Não há fundos para recursos escolares, mas há fundos para treinamento de armas. Que dêem esse treinamento e licença para portar armas às pessoas encarregadas da segurança. Essa é a solução.

Todos têm uma responsabilidade. A responsabilidade de manter as escolas seguras não é dos professores.


Sabia que a BBC está também no Telegram? Inscreva-se no canal.

Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Footer BBC