"Guerra. Dia 3 (abril), domingo. Dormi bem, acordei e sorri. Vovó foi buscar água. A propósito, meu aniversário está chegando. Dia 26. Tenho uma ferida nas costas, minha pele está rasgada. Minha irmã tem uma lesão na cabeça. Mamãe teve a carne arrancada do braço e um buraco na perna." A tinta azul da caneta traduz para o papel as dores da guerra na visão de uma criança e esbarra em desenhos e emoticons de tristeza. O diário foi fotografafo por Evgeny Sosnovsky, morador de Mariupol, cidade situada no sudeste da Ucrânia devastada pelas forças russas. "Tenho oito anos, minha irmã tem 15 e minha mãe, 38. Está na hora de fazer o curativo. (...) Tenho uma amiga, Vika, ela é alegre e é nossa vizinha. É gente boa", escreveu o menino.
"Meus dois cães morreram, e minha avó, Galya. Minha cidade amada morreu durante todo esse tempo, desde a quinta-feira, 24 (de fevereiro)", acrescenta. O diário traz desenhos de tanques de guerra, de prédios em chamas, de corpos na rua, mas também de um bolo — alusão ao aniversário do menino — e de pessoas e cães com asas, menção aos mortos. Até o fechamento desta edição, a identidade e o paradeiro do menino e de seus familiares eram desconhecidos.
Na siderúrgica de Azovstal, foco da resistência imposta pelo comando paramilitar conhecido como Batalhão de Azov, a situação seguia dramática. O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, apelou ao secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, para salvar os feridos em Azovstal. "As pessoas que se encontram no local correm risco de vida. Pedimos que nos ajude a salvá-las", afirmou Zelensky a Guterres por telefone. Ele lembrou ao diplomata português que "as organizações internacionais podem ser eficazes" nesse processo.
Na terça-feira, uma operação do Escritório Humanitário da ONU (Ocha) e da Cruz Vermelha Internacional retirou 101 civis da siderúrgica. A Rússia anunciou um cessar-fogo unilateral diurno, a partir de hoje, para facilitar o resgate. O Ministério da Defesa declarou que "das 8h às 18h (horário de Moscou) nos dias 5, 6 e 7 de maio um corredor humanitário será aberto no território da usina siderúrgica Azovstal para evacuar civis". "Durante este período, as Forças Armadas russas e as formações da República Popular de Donetsk decretaram um cessar-fogo unilateral de hostilidades", completou. O anúncio coincidiu com "violentos combates" no complexo industrial.
O brasileiro Saviano Abreu, porta-voz do Ocha, confirmou ao Correio que 344 civis de Mariupol, Manhush, Berdiansk, Tokmak e Vasykivka foram retirados em segurança da região, ontem, e transferidos para Zaporizhzhia. A inteligência ucraniana apurou que a Rússia pretende realizar um desfile militar em Mariupol, na próxima segunda-feira, dia em que Moscou comemora a vitória sobre a Alemanha nazista em 1945.
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Lar fora de casa
Assim que a Rússia invadiu a Ucrânia, em 24 de fevereiro, a ativista britânica Rend Platings ficou profundamente chocada. Ela não pensou duas vezes e viajou de Cambridge, onde mora, até Londres, onde se uniu aos protestos contra a guerra. "Diante da embaixada, gritei a plenos pulmões. Enquanto isso, meu marido estava sentado em casa pensando sobre o que poderia fazer. Ele me enviou uma foto pelo WhatsApp em que aparecia com duas latas de tinta e perguntou-me sobre o que acharia de pintarmos nossa casa", contou ao Correio. No dia seguinte, com a ajuda de um amigo, Michael Platings pintou o imóvel de amarelo e azul, as cores da bandeira da Ucrânia.
Rend e Michael receberam, em casa, a amiga ucraniana Kristina Korniiuk, hospedada com a família desde o último domingo. "Ela ficará aqui pelo tempo que precisar", disse Rend. Por telefone, Kristina relatou ao Correio que viu fotos da casa ainda na Ucrânia, pela internet. "Quando soube que fizeram isso, senti gratidão e fiquei surpresa com o fato de pessoas tão distantes da Ucrânia serem afetadas pela situação em meu país. Valorizo muito essa atitude e esse apoio. Agora é impossível eu me perder aqui. Se isso ocorrer, basta eu perguntar pela casa ucraniana", brincou a professora de espanhol.
Kristina passou as três primeiras noites da guerra abrigada no sótão do prédio onde mora, em Kiev. "Escutava as explosões e tentava tranquilizar minha sobrinha, de cinco anos. Eu disse a ela que nosso país tem seus próprios super heróis, que nos protegem e que tudo ficaria bem. Com o tempo, começamos a nos acostumar com o som dos bombardeios", afirmou. Ante o risco de ficar presa no sótão, caso um míssil atingisse o edifício, ela preferiu se esconder no corredor do apartamento, antes de fugir de Kiev e encontrar um lar de cores azul e amarela no Reino Unido.