O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, classificou como "muito radical" a eventual derrubada da histórica decisão de 1973 da Suprema Corte no caso "Roe vs. Wade", que legalizou o direito à interrupção da gravidez no país. Ao comentar o vazamento de um rascunho de opinião da máxima instância do Judiciário, o qual prevê a proibição do aborto nos EUA, Joe Biden exortou os norte-americanos a defenderem, nas eleições legislativas de 8 de novembro, o "direito fundamental" ao procedimento. Ele teme que "uma série de direitos" dos cidadãos seja ameaçada com a anulação da jurisprudência.
O juiz John Roberts, chefe da Suprema Corte, confirmou a autenticidade do rascunho do documento — divulgado pelo site Politico —, reiterou que a decisão final não foi tomada e determinou uma investigação para apurar as responsabilidades pelo vazamento, o qual considerou uma "traição".
O site Politico informou que o rascunho foi escrito pelo juiz Samuel Alito e circulava na Suprema Corte desde fevereiro. Com 98 páginas, intitulado "Opínião do Tribunal" e datado de 10 de fevereiro, o documento taxava o Roe vs. Wade como "extremamente errado desde do início". "Consideramos que Roe e Casey devem ser anulados", recomendou Alito. "É hora de atender à Constituição e devolver a questão do aborto aos representantes eleitos do povo", diz ele.
Na tarde de ontem, por meio de comunicado, Biden lembrou que "o direito de escolha da mulher é fundamental". "A justiça básica e a estabilidade de nossa lei exigem que ela não seja revogada." Ele ordenou ao Conselho de Política de Genero e ao Gabinete do Conselho da Casa Branca que preparem opções para uma resposta ao "ataque contínuo ao aborto e aos direitos reprodutivos". "Caberá aos funcionários eleitos da nossa nação, em todos os níveis de governo, proteger o direito de escolha da mulher. E caberá aos eleitores eleger os funcionários a favor do direito de decidir em novembro", avisou o democrata, ao antecipar a necessidade de eleger mais senadores pró-aborto e uma maioria na Câmara de Deputados em prol da escolha da mulher.
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Interferência
A vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, afirmou que "é hora de lutar pelas mulheres e pelo nosso país com tudo o que temos". Na mesma linha de Biden, Kamala explicou que, em sua raiz, o (caso) Roe protege o direito fundamental à privacidade. "O que está claro aqui é que oponentes (da lei) querem punir as mulheres e roubar-lhes os direitos de tomarem decisões sobre os próprios corpos", admitiu. Kamala alertou que, "se o direito à privacidade for enfraquecido, todas as pessoas poderão enfrentar um futuro no qual o governo possa potencialmente interferir nas decisões que tomarem sobre a própria vida".
Presidente do Centro de Direitos Reprodutivos dos EUA, Nancy Northup enviou nota à reportagem, em que diz não saber se o documento vazado pelo site Politico reflete a decisão final da Suprema Corte. "Se a Suprema Corte derrubar o caso Roe vs. Wade, será uma retirada injustificável e sem precedentes de um direito garantido, em vigor há quase cinco décadas. Isso representaria o retrocesso mais danoso aos direitos das mulheres", advertiu.
Em visita a São Paulo, o historiador político James Naylor Green, professor da Universidade Brown (em Rhode Island) e discípulo do falecido brasilianista Thomas Skidmore, disse ao Correio que, caso confirmada, a decisão da Suprema Corte será "um golpe enorme contra os direitos democráticos das mulheres e da sociedade". "Há 49 anos, a mulher pode realizar aborto nos EUA quando quiser. A medida, que deverá ser decretada em até dois meses, removerá esse direito em todo o país. Na Câmara dos Representantes, um projeto de lei aprovado respalda o acesso ao aborto. No Senado, há obstrução, por parte da minoria republicana, à legislação."
De acordo com Green, não se sabe quem vazou o rascunho da opinião da Suprema Corte. "Pode ter sido a direita, interessada em consolidar a votação na máxima instância judicial, ou a esquerda, ávida por mobilizar os americanos para as eleições de novembro. De qualquer forma, foi um fato muito grave. Isso vai virar questão eleitoral e é preciso levar em conta que a maioria da população apoia o direito de a mulher decidir sobre o seu próprio corpo e abortar", admitiu. O estudioso alerta que a provável decisão da Suprema Corte terá impacto no Brasil. "A direita brasileira usará isso para impedir qualquer iniciativa de debater o aborto no Brasil. É um grande retrocesso."