A última vez que a guerra chegou a Uman, na Ucrânia, a cidade foi ocupada pelos nazistas.
Hoje com 83 anos, Olga tinha apenas dois anos de idade quando os soldados chegaram à sua aldeia.
Estamos sentados ao redor de uma mesa em um centro comunitário judaico em Uman, uma cidade a oeste do centro da Ucrânia. As paredes do centro estão cobertas de fotos alegres de reuniões familiares.
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Olga observa o chá em sua xícara lentamente se tornando um marrom-escuro amargo e não toca nos biscoitos na mesa. Ela mora a poucos quilômetros de onde foi criada.
"Fomos levados por 5 km para um campo. Eu estava com minha mãe e minha avó", ela conta. "Quando chegamos ao campo já havia valas cavadas. Eles começaram a disparar. Nós estávamos cercadas por cães, por policiais, para impedir que alguém conseguisse escapar."
"As pessoas começaram a cair na vala. Vivas, mortas, feridas. Isso começou de manhã e durou até o meio-dia. Depois eles jogaram um pouco de terra em cima e foram embora."
"Dois meninos, de seis e sete anos, sobreviveram. Eles começaram a procurar por outros sobreviventes. Eles me desenterraram com as mãos."
Olga sobreviveu e foi escondida por uma família até o fim da guerra.
Ela é uma de três sobreviventes do Holocausto à mesa. As outras histórias são igualmente chocantes.
A família de Dmytro viveu em uma floresta para escapar dos nazistas. Yevhen se lembra de ter fugido de um porão quando soldados nazistas tentaram matá-lo com fumaça. Só sua mãe e ele sobreviveram à guerra.
As repetidas acusações do presidente russo, Vladimir Putin, de que a Ucrânia precisa ser "desnazificada", parecem particularmente ofensivas para um grupo que viveu a ocupação.
"Tenho muitos familiares na Rússia. Eles costumam me dizer que temos muitos nazistas aqui", diz Dmytro. "Eu digo a eles que se isso for verdade, então eu também sou um nazista. Vocês podem me matar também."
"Putin não tem nada que fazer aqui", diz Olga. "A maneira como ele zomba de pessoas pacíficas é simplesmente incrível."
Agora na casa dos 80 anos, eles vêem sua cidade natal sob nova ameaça.
A cidade de Uman é conhecida como um local de peregrinação para judeus ortodoxos que visitam o túmulo do rabino Nachman, fundador do movimento hassídico de Breslov. Todos os anos, durante o feriado de Rosh Hashaná, milhares de fiéis chegam à cidade.
Por enquanto, as ruas próximas ao túmulo estão silenciosas. Cartazes em hebraico, anunciando testes de PCR, adornam os postes. Ficamos sabendo que dos cerca de 2 mil judeus de Breslov que vivem na cidade durante todo o ano, apenas entre 50 e 100 ficaram.
Uman foi atingida por um míssil nos primeiros dias da guerra, matando um ciclista. Foi o suficiente para que muitos fossem embora.
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Uman fica a menos de 160 km da fronteira com a Moldávia. Com estradas partindo de Dnipro no leste, Odessa no sul e Kiev no norte, muitos evacuados passaram pela cidade enquanto fugiam de seu país. Parte da comunidade judaica que ficou para trás ajudou quem fugia.
"Decidimos dar a eles um lugar para dormir, o hotel e o centro médico", diz o rabino Nathan Ben Nun, presidente da Fundação Rabi Nachman. "A guerra não é boa, mas devemos fazer limonada com limões."
A sinagoga hassídica de Breslov, uma das maiores da Europa, pode abrigar milhares de fiéis em seus três andares. Normalmente apenas cheio durante o Rosh Hashaná, agora este espaço é usado como um centro de boas-vindas, aberto a todos, independentemente da religião, como primeiro porto de escala quando chegam à cidade.
O espaço é usado para doações de roupas — com pilhas de suéteres, gorros de lã e camisetas espalhadas pelos bancos. Voluntários preparam refeições para quem precisa. O porão da sinagoga, geralmente usado para lavagem cerimonial (Mikveh), agora virou um bunker. Os colchões estão empilhados nos bancos de madeira.
"Chegamos a hospedar até 200 pessoas aqui", diz Irina Rybnitskaya, advogada da fundação Rabi Nachman, que ajudou a organizar a resposta na sinagoga. "Alguns dormindo a noite toda. No primeiro dia da guerra, todos estavam com medo. Ninguém sabia o que fazer. Muitas pessoas vieram até nós, então nós os recebemos com chá e café."
"A comunidade hassídica e os ucranianos ficaram muito mais próximos. Eles não diferenciam entre judeus ou não judeus. Não importa."
Muitos saíram às pressas com poucos bens, dinheiro ou ideia de onde iriam. Em alguns dos hotéis de blocos de concreto da cidade, geralmente lotados apenas uma vez por ano por peregrinos, famílias encontraram quartos pagos por fundações judaicas.
Em um hotel, que abriga mais de cem famílias, todas agora dependentes da bondade de estranhos, encontramos os sete membros da família Yeremets. Eles escaparam da cidade de Kherson, ocupada pelos russos, cerca de duas semanas atrás. Empilhados no canto de seu quarto de hotel estão três caixas de ferramentas.
"Eu trabalho em TI, mas também sei fazer móveis", disse um membro da família, Dmytro. "Pensei que talvez, para onde quer que fôssemos, poderia ser útil."
Eles estavam planejando dormir nos seus carros quando se depararam com a fundação.
"Tenho quase 70 anos", diz o avô Victor. "Mas eu nunca vi nada assim na minha vida. Eles apenas disseram — aqui está tudo o que você precisa. Nós não esperávamos isso."
"Enquanto eu viver, serei muito grato a essas pessoas", diz sua filha Ina.
Na sala de jantar do hotel, encontramos o rabino Liron Ederi. Além de organizar a acomodação em hotel, ele também deixou sua cidade de Kryvyi Rih, cidade natal do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky. O rabino Ederi diz que está pensando em sua própria mãe, uma sobrevivente de Auschwitz, e o que ela teria pensado sobre a invasão, a violência, o medo, tudo realizado pela Rússia em nome de livrar a Ucrânia dos nazistas.
"Acredito que uma pessoa que acusa alguém de algo deve primeiro se olhar no espelho", diz ele.
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