Sociedade

O que a Bíblia diz sobre o aborto

Discussões sobre aborto muitas vezes dividem religiosos fundamentalistas e aqueles que defendem Estado laico epleno exercício das liberdades individuais

BBC
Edison Veiga - De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
postado em 09/05/2022 09:51
 (crédito: Getty Images)
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Discussões sobre a legalização ou não do aborto muitas vezes dividem religiosos fundamentalistas e aqueles que defendem um Estado laico e o pleno exercício das liberdades individuais. Base para boa parte das religiões ocidentais, a Bíblia Sagrada quase não aborda o tema — quando o faz, é de forma indireta, o que permite também uma vasta gama de interpretações.

Duas passagens costumam ser citadas por religiosos para justificar a ideia de que uma interrupção voluntária da gravidez seria um ato pecaminoso e contrário à vontade de Deus. Ambas constam do Antigo Testamento, isto é, a metade da escritura que remete ao período anterior ao nascimento de Jesus.

Logo no início do livro do profeta Jeremias, escrito provavelmente no século 7 a.C., o autor se apresenta e então introduz as palavras que lhe teriam sido ditas pelo próprio Deus. E principia o discurso ressaltando que ele lhe afirmou que "antes que te formasse no ventre, te conheci; e antes que saísses da mãe, te santifiquei".

Já nos Salmos, o maior dos livros que compõem a Bíblia, há outra referência a essa vida que existiria antes mesmo do nascimento. No cântico de número 139, o autor louva a Deus e diz que "os teus olhos viram o meu corpo ainda informe". "E no teu livro todas estas coisas foram escritas, as quais em continuação foram formadas, quando nem ainda uma delas havia", prossegue.

Para especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, a discussão parte de premissas filosóficas e biológicas, que são as chaves para interpretar os textos sagrados: quando exatamente começaria a vida?

"Importante ressaltar que a Bíblia afronta o problema do aborto sublinhando o valor da vida humana, aquela chamada por Deus antes mesmo de que ela esteja dentro do útero materno", defende o padre Renato Gonçalves da Silva, mestre em teologia com ênfase em sacra escritura pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e atualmente estudante de exegese bíblica no Pontifício Instituto Bíblico de Roma.

"Esta mentalidade está presente, de forma especial, em Jeremias [no trecho citado acima]", analisa ele, enfatizando a dupla utilização do advérbio de tempo "antes", reforçando a ideia de que já haveria vida anterior ao fato do nascimento.

"O 'antes' sublinha a verdade bíblica de que a vida humana advém de uma decisão atemporal realizada por Deus, que dentro da sua existência onipotente e sábia já formou, conheceu e santificou a vida humana", defende Silva.

O estudioso enfatiza que o verbo "formar", originalmente "iatsar", em hebraico, "traz a ideia fundamental de um ato criador realizado em um passado muito remoto que, igualmente, pode ser entendido como o eterno presente que define a existência de Deus, aquele que não possui passado ou futuro". "Em outras palavras, a criação de uma vida humana é uma decisão divina realizada de uma vez por todas e que se atualiza sempre, não importando as circunstâncias do mundo humano", ressalta.

Vida em potencial

Já sobre o salmo, o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, comenta que "geralmente essa passagem é trazida à tona para se dizer que aquela 'substância ainda informe' é o processo inicial da vida, portanto já haveria ali alguma coisa que já seria uma pessoa".

"Porque a discussão toda é essa: ser pessoa ou não ser pessoa, quando começa a vida", pontua Moraes. "Os contrários ao aborto trabalham com a ideia de que desde o momento da fecundação você tem ali uma pessoa, criada por Deus, mesmo que o processo todo seja orgânico. A alma seria dada por Deus, portanto Deus é o dono da vida, o criador."

Mão e bíblia
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Duas passagens costumam ser citadas por religiosos para justificar a ideia de que uma interrupção voluntária da gravidez seria um ato pecaminoso e contrário à vontade de Deus - ambas constam do Antigo Testamento

O teólogo explica que, segundo esse raciocínio, Deus "conhece passado, presente e futuro e, portanto, atentar contra aquela substância informe que já seria uma pessoa configuraria crime".

Claro que essa interpretação não ocorreu do dia para a noite e há camadas filosóficas para fundamentar o entendimento religioso a partir dessas poucas linhas. Moraes salienta que é uma lógica "emprestada do pensamento" do grego Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C), quanto aos conceitos de ato e potência. "A metáfora da semente", contextualiza o professor. "A semente tem potencial para vir a ser uma árvore. É a mesma ideia que se aplica a uma pessoa. Mesmo que no momento da fecundação não estejam ali os braços formados, os olhos formados, uma pessoa plena, há potencial para. E, portanto, se você deixar aquela potência em seu processo natural, depois de nove meses você tem oficialmente uma pessoa vindo ao mundo."

Moraes reconhece que são poucas as citações e as referências bíblicas que permitem interpretações acerca do aborto. E explica que, dentro da mentalidade religiosa, a discussão acaba sendo balizada pela questão de Deus ser entendido como "o criador, o dono da vida". "Ele seria conhecedor de todas as vidas antes inclusive se elas virem ao mundo", afirma. "Para um religioso, atentar contra um feto é atentar contra a vida."

'Direito de Decidir'

A organização Católicas pelo Direito de Decidir, grupo que costuma divergir da posição oficial da Igreja em temas relacionados aos direitos sexuais e reprodutivos, enfatiza que a Bíblia não pode ser utilizada para balizar a criminalização do aborto.

"A questão do aborto não é um tema bíblico. Os temas bíblicos dizem respeito a horizontes de organização da sociedade, da vida, da linha de defesa de vida para todas e todos. E vida em abundância, como diz o Evangelho", salienta a socióloga Maria José Rosado, professora da PUC-SP e presidente da organização.

"Isso significa vida plena, o que para homens e mulheres significa o controle da própria capacidade de fazer outros seres humanos e a capacidade sobre a maneira de realizar aquilo que sua sexualidade e sua capacidade reprodutiva permitem aos seres humanos", acrescenta ela.

"Quando se invoca a Bíblia para condenar o aborto, como fazem grupos em geral fundamentalistas, conservadores, neoconservadores religiosos, isso é feito a partir de reinterpretações de trechos de uma maneira que possibilite apoiar aquilo que eles querem defender politicamente: a restrição dos direitos sexuais e reprodutivos", argumenta a socióloga Rosado.

"Na verdade, não há base, não há fundamento para invocar a bíblia a favor dessa restrição", diz ela. "Ao contrário, como demonstram as teólogas feministas, a Bíblia deveria ser usada para ampliar as possibilidades de realização de uma vida plena."

"A Bíblia não diz nada diretamente sobre o aborto. Não há uma afirmação categórica especificamente sobre o aborto. O que temos são versículos que apontam para a formação do ser humano já no útero e como desde o útero, desde o ventre da mãe o ser humano é um ser querido a Deus", aponta o estudioso de hagiografias Thiago Maerki, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos.

Mulher toca barriga
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"Questão do aborto não é um tema bíblico", diz a socióloga Maria José Rosado, professora da PUC-SP

O que as igrejas fazem é uma interpretação de certos versiculos, prossegue Maerki. "A Bíblia não tem um mandamento que diga 'não abortarás'. Temos o 'não matarás', que muitas vezes é tomado pelos religiosos para condenar também o aborto", diz ele.

Muitas denominações religiosas usam trechos para "interpretar", segundo ele, que o aborto é criminoso. "Não é uma afirmação, mas uma interpretação", diz ele. "O que ocorre muitas vezes é uma interpretação fora do contexto, para justificar seus dogmas, seus interesses, seus ensinamentos", afirma.

Evolução do pensamento cristão

Coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP, o biólogo e sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto vê essas atualizações interpretativas como resultado da própria evolução do conhecimento humano. "A doutrina católica sempre condenou o aborto, entendido como ato de matar uma criança ainda no útero materno. Contudo, a compreensão científica da concepção e da gravidez mudou muito ao longo dos séculos, e os textos mais antigos nem sempre formularam a interdição ao aborto como proposto atualmente", contextualiza ele.

Mulheres em protesto contra criminalização do aborto nos EUA
EPA
Mulheres em protesto contra criminalização do aborto nos EUA

"Isso abriu espaço para que muitos autores considerem que o aborto era, de alguma forma, aceito pelos cristãos na Antiguidade e na Idade Média. Essa interpretação, que imagina a proibição do aborto como algo recente na história da Igreja, contudo, não me parece fiel ao desenvolvimento histórico das ideias", diz ele.

Ribeiro Neto ressalta que tanto a maternidade quanto o aborto "são carregados de significados simbólico e afetivo". "É natural que sempre tenha havido pessoas que, mesmo se declarando católicas, não concordassem com o magistério oficial da Igreja num tema tão sensível. Na sociedade atual, a pluralidade cultural permitiu que essas discordâncias ganhassem espaço no debate público", esclarece o acadêmico.

Para ele, entretanto, "o fenômeno cultural mais marcante, em relação ao aborto, foi a ascensão do individualismo e a absolutização da autonomia individual". "No passado, a mentalidade hegemônica considerava que a criança era um novo ser humano, desejado por Deus, e a mãe não tinha um direito absoluto sobre ele. Atualmente, a mentalidade hegemônica estabelece que a autonomia da mãe se sobrepõe a qualquer outro fato, de modo que o direito do feto à vida é determinado pela vontade da mãe, ou de ambos os genitores, no máximo", analisa Ribeiro Neto. "Essa mudança cultural impactou diretamente as interpretações da doutrina católica e explica a consolidação de grupos que tentam mudar o próprio magistério oficial da Igreja Católica sobre o tema."

Para o padre Renato Gonçalves da Silva "a vida humana, mesmo antes do seu nascimento" tem um valor "paradigmático na Bíblia", onde ela é apresentada como um dom "santificado por Deus". Também parte do Antigo Testamento, o livro do profeta Isaías, provavelmente do século 8 a.C., há um trecho que diz "assim diz o Senhor que te criou e te formou desde o ventre materno e que te ajuda".

Para Silva, essas passagens ilustram como "todos os homens" são criados "de forma muito concreta" no "ventre materno por Deus, aquele que, em um tempo primordial, decidiu pela vida de todo um povo representado na figura singular de cada homem que o compõe".

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"Para o cristianismo bíblico, a vida humana é sacra, já no ventre materno, porque a mesma é uma extensão da vida do filho de Deus, Cristo Jesus que vive, de forma paradigmática, em cada um dos homens de forma singular", acrescenta o religioso.

Silva concorda que o tema, contudo, seja tratado na Bíblia "de forma implícita". Segundo ele, são dois os motivos que justificam esse fato. Primeiro, porque os textos sacros "preferem sublinhar o caráter sacro da vida humana tentando persuadir os seus ouvintes a rejeitar o aborto através de argumentos positivos". Além disso, defende o padre, "à mentalidade do homem bíblico, o aborto é uma prática tão explicitamente condenável que não merece grandes discursos para defini-lo como um grande erro".

Mesmo que não esteja dito com todas as letras na Bíblia, há registros que mostram que a criminalização do aborto era parte da mentalidade dos primeiros cristãos. No Didaché, um texto de 16 capítulos escrito no primeiro século da Era Cristã, que funcionava como uma espécie de catecismo, há um trecho que determina: "tu não matarás, mediante o aborto, o fruto do seio".

"O cristianismo do primeiro século já condenava de forma explícita a prática do aborto difusa entre gregos e romanos", destaca Silva.


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