Na contramão da diplomacia ocidental, enquanto os Estados Unidos e a União Europeia têm condenado e punido Moscou pela invasão à Ucrânia, a China não somente reforça a retórica de apoio à Rússia, como propõe uma reformulação da ordem internacional. O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Zhao Lijian, considerou o conflito no Leste da Europa como uma guerra entre a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), liderada pelos EUA, e a Rússia, além de exaltar o elo entre Pequim e Moscou. O pronunciamento de Zhao foi dado um dia depois de mísseis russos atingirem Kiev, matando uma jornalista, durante a visita do secretário-geral da ONU, António Guterres.
"Uma importante lição do sucesso das relações entre China e Rússia é que os dois lados se mostram superiores ao modelo da aliança política e militar da era da Guerra Fria, e se comprometem a desenvolver um novo modelo de relações internacionais baseado na não-aliança, na não-confrontação e em não visar terceiros países. Isso é fundamentalmente diferente da mentalidade da Guerra Fria", declarou Zhao.
Cientista político e professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Mauricio Santoro lembrou ao Correio que, dias antes do início da invasão à Ucrânia, Xi e Putin se reuniram. "Na ocasião, ambos disseram que a relação entre os dois países era uma amizade sem limites. Há uma tentativa de se construir uma aliança diferente da Otan. Essa relação entre Pequim e Moscou não é um acordo militar baseado na autodefesa, mas uma série de parcerias econômicas e políticas", avaliou.
Segundo ele, a relação sino-russa se torna mais profunda, dada a dimensão continental das duas nações e seu peso nas relações internacionais. "Ainda que não endossem totalmente a guerra, os chineses seguem apoiando, política e diplomaticamente, os russos e tentando reduzir os impactos das sanções", explicou Santoro.
O especialista acrescenta que o centro da relação da China com a Rússia é uma tentativa de formar uma coalizão política com visões sobre a ordem global muito mais crítica do que a do Ocidente. "A parceria é, substancialmente, um acordo político, propondo uma visão de mundo alternativa à preconizada pelo Ocidente. Essa coalizão tem um desdobramento mais suave com os Brics (grupo formado por Brasil, Rússia, Índia e África do Sul) e mais pesado, sobretudo no Oriente Médio. A parceria entre Pequim e Moscou tem proximidade com países como Síria e Irã, que mantêm uma relação bastante conturbada com os europeus e os norte-americanos", concluiu Santoro.
Saiba Mais
Morte
A jornalista Vira Hyrych, 55 anos, produtora da Rádio Free Europe/Radio Liberty, estava feliz com a compra do apartamento no prédio de 25 andares situado em Shevchenkivskyi, distrito central de Kiev. Na quinta-feira, enquanto Guterres, visitava o presidente Volodymyr Zelensky, cinco mísseis foram disparados pela Rússia. Um deles atingiu em cheio o apartamento de Vira, matando-a na hora. Ontem, a Rússia confirmou que atacou Kiev com armas de "alta precisão de longo alcance" contra as instalações da empresa espacial e de fabricação de mísseis Artyom. O Kremlin não admitiu ter atingido um edifício residencial. Guterres classificou o bombardeio como "maldoso".
O jornalista e ativista Maksym Butkeyych, 44 anos, contou ao Correio que conheceu Vira há 20 anos. "Eu trabalhava para a tevê ucraniana. Ela era produtora e me ajudava na organização, na produção de textos, em assuntos logísticos e no levantamento de informações. Atuamos, juntos, nas emissoras STB e 1 1. No âmbito pessoal, era muito legal, sempre calma e interessada no escopo mais amplo do conhecimento. Tinha a habilidade de ser sempre correta e educada." Em 24 de fevereiro, ele se alistou às forças armadas. "Hoje, sou tenente. Ajudei a liberar vilarejos", disse.
Maksym soube que os pais de Vira enfrentaram um mês de ocupação russa, perto de Kiev. "Ela temia pela segurança deles. Ninguém poderia prever que Vira se tornaria vítima dos assassinos russos."