Guerra no leste europeu

Putin passa recado para o Ocidente com teste de míssil balístico

Rússia testa míssil balístico intercontinental de nova geração capaz de transportar ogivas nucleares. Presidente russo comemora sucesso e diz que armamento fará países pensarem duas vezes antes de intimidarem Moscou. Ucrânia propõe negociação em Mariupol

O aviso do Kremlin veio em forma de lançamento do Sarmat, um míssil balístico intercontinental de nova  geração capaz de alcançar alvos a 18 mil quilômetros de distância e de carregar ogivas nucleares. Às 15h12 de ontem (9h12 em Brasília), o projétil alcançou o céu no cosmódromo de Plesetsk, 800km ao norte de Moscou. Enquanto os bombardeios prosseguiam na Ucrânia e pouco depois do teste bélico, o presidente russo, Vladimir Putin, comemorou o sucesso do disparo em tom de intimidação. "Ele (Sarmat) não tem análogo no mundo e não terá por muito tempo. Essa arma verdadeiramente única reforçará as capacidades de combate das nossas forças armadas, protegerá de forma confiável a segurança da Rússia contra ameaças externas e fará aqueles que ameaçam nosso país com uma retórica desenfreada e agressiva pensarem duas vezes", declarou Putin.

O major-general russo Igor Konashenkov, porta-voz do Ministério da Defesa da Rússia, explicou que o míssil atingiu o objetivo a mais de 5 mil quilômeros de Plesetsk: a Península de Kamchatka, no extremo leste. "Uma vez finalizado o programa de provas, o Sarmat passará a fazer parte das forças estratégicas russas", assegurou. Os Estados Unidos minimizaram a importância do teste. Segundo John Kirby, porta-voz do Pentágono, Moscou "notificou devidamente" Washington sobre o lançamento, em virtude de obrigações impostas pelo Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP). Ele também disse que o Sarmat não representa uma ameaça para os EUA e seus aliados. 

Diretor de Estratégia, Tecnologia e Controle de Armas do Instituto Internacional para Estudos Estratégicos (em Berlim), William Alberque afirmou ao Correio que a Rússia tinha realizado os chamados "testes de ejeção", nos quais o míssil é empurrado para fora do silo e há o acionamento do primeiro estágio do lançamento. "Essas operações ocorreram em dezembro de 2017, em março de 2018 e em maio do mesmo ano", lembrou. "O teste de hoje (ontem) é, supostamente, o primeiro completo de todos os estágios, com a Rússia relatando que as ogivas alcançaram a Península de Kamchatka, a cerca de 5.700km. Vale destacar que Moscou pretendia realizar este teste na primavera de 2019, mas os mísseis somente começaram a ser posicionados no silo em 2021. O programa está significativamente atrasado."

Por sua vez, Nikolai Sokov, especialista do Centro para Desarmamento e Não Proliferação de Viena (VCDNP), considerou o lançamento do Sarmat como "um evento rotineiro". "O programa estava em andamento desde 2011 e chegou a uma conclusão lógica após um atraso de aproximadamente 42 meses", disse à reportagem. Ele vê "provável coincidência" no fato de o teste ter sido feito no momento em que a Rússia trava uma guerra. "É óbvio que declarações propagandísticas inevitáveis foram dadas por ocasião do teste, mas não são diferentes de afirmações similares sobre a conclusão de outros programas bélicos anteriores."

De acordo com Sokov, o Sarmat foi desenhado com o propósito de penetrar o sistema de defesa antimísseis dos Estados Unidos, além de ser parte da capacidade dissuasiva nuclear da Rússia. "A escolha  por um míssil balístico intercontinental pesado foi determinada por sua versatilidade: ele pode carregar muitas variantes de carga útil — várias ogivas, além de auxiliares de penetração de defesa projetados para enganar um sistema de defesa antimísseis e manobrar ogivas supersônicas", comentou. 

Saiba Mais

Ajuda

No front, a cidade portuária estratégica de Mariupol (sudeste) estava prestes a cair nas mãos dos mercenários e dos soldados russos. O negociador ucraniano e assessor presidencial Mijailo Podoliak propôs a realização de uma "rodada especial" de negociações na própria Mariupol, "sem nenhuma condição". David Arakhamia, outro negociador ucraniano, assegurou que ele e Podoliak estão "preparados para ir a Mariupol e conversar com o lado russo sobre a retirada de nossa guarnição militar e dos civis". Militares seguiam entrincheirados em uma planta siderúrgica. 

Em visita a Kiev, Charles Michel — presidente do Conselho Europeu — se reuniu com o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, e prometeu que fará "todo o possível" para que a Ucrânia "ganhe a guerra". "Vocês não estão sozinhos. Estamos junto com vocês e faremos todo o possível para apoiar seus esforços", declarou.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, enviou cartas a Zelensky e a Putin solicitando ser recebido em Kiev e em Moscou. "Ele quer discutir medidas urgentes para trazer paz à Ucrânia e o futuro do multilateralismo", disse o porta-voz, Stéphane Dujarric. Tropas russas mantêm combates no Donbass (leste), região parcialmente controlada pelos separatistas pró-Moscou. 

Três perguntas para Sergiy Taruta

Sergiy Taruta, parlamentar ucraniano e ex-governador de Donetsk (entre março e outubro de 2014), na região de Donbass. Nascido em Mariupol

Arquivo pessoal - Sergiy Taruta, ex-governador de Donetsk

Como o senhor vê a ofensiva russa no Donbass?

A Ucrânia não tem outra opção que não seja repelir o ataque das tropas russas no Donbass. Nós devemos retornar os territórios ucranianos às fronteiras de 2014 que existiam antes da invasão russa e da anexação da Crimeia. Caso contrário, teremos a situção de 2014 — de conflito latente. Em 56 dias de resistência, a Ucrânia mostrou não apenas que pode manter posições, mas também repelir a ofensiva das tropas russas. Para a Ucrânia, existe apenas um resultado possível: a vitória. Para nós, ucranianos, é uma questão de sobrevivência enquanto nação. Creio que temos tudo para vencer: espírito, vontade, apoio dos parceiros ocidentais e oito anos de experiência em repelir a agressão russa.

O teste com o míssil balístico intercontinental russo preocupa o senhor?

Putin ama o show. O teste desse míssil é o novo show de Putin. Ele o faz para instilar medo, pois o medo cega a determinação. Os ucranianos lutam pela independência. Ter medo está fora de nosso roteiro. Putin é capaz de qualquer coisa, incluindo usar armas nuclares na Ucrânia. Mas sabemos como defender, contra-atacar e destruir. Nós transformaremos suas armas em sucata.

Há o risco de a Rússia realizar nova tentativa de captura de Kiev?

Teoricamente, existe tal possibilidade. Na prática, porém, dada a presença das forças ucranianas e o moral de nossas tropas, essa probabilidade é pequena.

"Escalada é ameaça ao mundo", diz Nikolai Sokov

"Há muitos rumores de que a Rússia possa utilizar armas nucleares contra a Ucrânia, mas isso é pura especulação; tal utilização é altamente improvável. O envolvimento dos Estados Unidos e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) na guerra poderia levar a uma escalada. Nesse caso, as armas nucleares certamente entrarão em cena — primeiro como uma ameaça explícita e potencialmente até como uso.

A situação em torno da Ucrânia é bastante imprevisível, e isso está fora da política declaratória da Rússia. Não está claro totalmente quais ações a ONU pode ver como toleráveis e o que poderia desencadear uma resposta vigorosa russa. Tal escalada, é claro, representa a maior ameaça para o mundo."

"Nós implamos por ajuda"

Em vídeo divulgado na terça-feira, Sergey Volyna — comandante da 36ª Brigada de Fuzileiros Navais do Exército ucraniano — pediu ajuda para ele e seus homens não morrerem. "Este pode ser o último apelo de nossas vidas. Provavelmente estamos enfrentando nossos útimos dias, senão horas. O inimigo nos excede em número de 10 para 1. Eles têm vantagem no ar, na artilharia, nas forças terrestres, em equipamentos e em tanques. Nós estamos defendendo um único objeto, a indústria Azovstal, onde, além de militares, há civis que se tornaram vítimas dessa guerra. Nós apelamos e imploramos aos líderes mundiais para que nos ajudem. Pedimos que usem o procedimento conhecido como 'extração' e nos levem ao território de um Estado que seja um terceiro ator (na guerra)", afirmou.