Guerra no leste europeu

Defensores ignoram ultimato da Rússia e prometem resistir por Mariupol

Premiê promete resistência feroz. Moradores em fuga contam ao Correio o horror que viveram dentro de porões, com sede, fome e medo

A advogada Daria Shicheva, 22 anos, traduz em uma única palavra o que passou em Mariupol. "Inferno", respondeu ao Correio ao ser questionada sobre como resume a vida em sua cidade natal, situada no sudeste da Ucrânia. Ela conseguiu entrar em contato com um das duas amigas que permanecem em Mariupol. "Eu a convenci a fugir. Prometeu-me tentar sair amanhã (hoje, 18 de abril). A conexão estava muito ruim. Não pudemos nos falar por muito tempo. Ela e a filha estão vivas, mas a sua casa foi incendiada", contou. Durante 30 dias, Daria; o marido, Stanislav; e o filho, Anthony, de 4 anos, tiveram que trocar de esconderijo várias vezes. Ontem, Mariupol estava prestes a capitular nas mãos dos soldados russos. "Todos aqueles que abandonarem suas armas terão a garantia de salvar suas vidas [...] É sua única chance", escreveu o Ministério da Defesa russo no Telegram.

O prazo dado por Moscou para que os últimos defensores ucranianos da cidade depusessem suas armas expirou, às 13h de ontem (7h em Brasília), com uma resposta desafiadora de Kiev. "Mariupol não caiu. Nossas forças militares, nossos soldados ainda estão lá. Eles vão lutar até o fim", prometeu Denys Shmygal, primeiro-ministro da Ucrânia, em entrevista à emissora ABC News. Por sua vez, o presidente Volodymyr Zelensky declarou que a queda de Mariupol somente pode ser evitada com "duas opções": o fornecimento de "todas as armas necessárias" dos países ocidentais para romper o longo cerco da cidade, ou "a via da negociação", na qual "o papel dos aliados deve ser igualmente decisivo".

Daria aposta que os militares ucranianos jamais entregarão Mariupol para a Rússia. "Eles lutarão até a morte. Eu os apoio, mas, ao mesmo tempo, sinto muito pelas pessoas que ficaram na cidade. Enquanto houver combates, a população sofrerá", lamenta. Epidemiologista do Centro para Controle e Prevenção de Doenças de Mariupol — órgão ligado ao Ministério da Saúde da Ucrânia —, Tatiana Gololobova, 40, sonha com o retorno à cidade. A casa da família não existe mais, veio abaixo atingida pelas bombas russas. Ela deposita suas esperanças nos últimos combatentes que se entrincheiraram nas instalações da siderúrgica Azovstal. "Os defensores de Mariupol são heróis de verdade, que defendem cada pedaço de nossa terra. Nós rezamos para que eles fiquem vivos",  comentou à reportagem. 

Tatiana se lembra dos momentos de horror dentro de um porão, em Mariupol. "Todas as noites, eu e meus amigos nos reuníamos para orações e para encontramos algo, naqueles dias, que pudéssemos agradecer a Deus. Tivemos que viver e sobreviver pelos nossos filhos", disse. Segundo ela, inicialmente, a comida começou a desaparecer da cidade. Depois, a energia acabou e tudo parou de funcionar. Lojas e farmácias fecharam as portas. A água, o gás, as comunicações e a internet sumiram. "Houve momentos de tantos bombardeios que era impossível até mesmo sair do porão. Não podíamos nos lavar ou usar o banheiro." O marido de Tatiana viu vários corpos quando se arriscou para buscar a água da chuva ou da neve.

De acordo com a parlamentar ucraniana Inna Sovsun, a queda de Mariupol dará controle à Rússia de um dos maiores portos da Ucrânia, além de criar um corredor entre a Península da Crimeia e os territórios ocupados pela Rússia nas regiões de Donetsk e Luhansk (leste). "Desde 2014, a Rússia deseja obter a conexão terrestre entre a Crimeia e seu território. Isso simplificará muito a comunicação e a entrega de mantimentos para a Crimeia ocupada. Hoje, tudo isso está acontecendo através da Ponte Kerch, que a Rússia construiu com grandes custos após a anexação da Crimeia", afirmou ao Correio, por e-mail.

Antes da guerra, Mariupol contava com uma população de 440 mil pessoas. O prefeito da cidade, Vadym Boychenko, anunciou a morte de pelo menos 20 mil civis. 

Inna acredita que, com o fracasso das tropas russas em tomarem Kiev, Moscou vê a importância de dominar a fronteira administrativa com Donetsk e Luhansk. "Mariupol é o principal obstáculo. Apesar da vantagem numérica expressiva de soldados russos, os defensores da Ucrânia têm, reiteradas vezes, repetido que defenderão a cidade até o fim. Agora, estão conduzindo ataques separados e destruindo equipamentos russos. Enquanto isso, nosso presidente tenta obter armas de outros países para ajudar nossos defensores em Mariupol."

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Vitória

Depois de se reunir com o presidente russo, Vladimir Putin, o chanceler da Áustria, Karl Nehammer, disse que o titular do Kremlin acha que venceu a guerra. O premiê ucraniano, Shmyhal, desqualificou a avaliação de Moscou e destacou que "nenhuma só cidade grande" caiu nas mãos da Rússia. O naufrágio do navio cruzador russo Moskva, atingido por dois mísseis da Ucrânia, levou as forças de Putin a intensificarem os ataques contra Kiev. Ontem, as tropas bombardearam outra fábrica militar perto da capital, uma resposta à destruição do orgulho da frota do Mar Negro. 

Em entrevista à CNN, Zelensky convidou o presidente da França, Emmanuel Macron, a visitar a Ucrânia. O líder ucraniano deseja que Macron veja com os próprios olhos que as forças russas estão cometendo um "genocídio", um termo que o líder francês tem se recusado a usar até agora.

Apelo à paz na "Páscoa da guerra"

Diante de cerca de 50 mil fiéis reunidos na Praça de São Pedro, na Cidade deo Vaticano, em sua tradicional bênção "Urbi et Orbi", o papa Francisco pediu que os líderes das nações "escutem" o clamor pela paz em uma "Páscoa da Guerra", na qual se referiu a uma Ucrânia "martirizada" pelo conflito. "Vimos muito sangue, muita violência", disse o pontífice, que pediu aos católicos que "não se acostumem às guerras". "Vamos todos nos comprometer a pedir a paz com uma voz poderosa, das varandas e nas ruas", exortou a multidão, que respondeu com aplausos. O líder espiritual de cerca de 1,3 bilhão de católicos insiste há semanas na necessidade de paz na Ucrânia, após a invasão do país desde 24 de fevereiro pelas tropas russas. "Levo em meu coração as muitas vítimas ucranianas, os milhões de refugiados e deslocados internos, as famílias divididas, os idosos que foram deixados sozinhos, as vidas destruídas e as cidades devastadas", disse Francisco.

Fuga em meio às bombas

Depoimento de  Daria Shicheva

"Em 24 de março, deixei Mariupol acompanhada de meu marido, Stanislav, e do nosso filho, Anthony, de 4 anos. Na nossa cidade natal, enfrentamos o inferno por um mês, desde o início da guerra. Foi tão bom morar em Mariupol pelos últimos 22 anos. Foi horrível viver ali por 30 dias, entre 24 de fevereiro e 24 de março. Tivemos que lidar com bombardeios terríveis e com uma catastrófica escassez de comida e de água.

Nos últimos dias de minha vida no porão, eu, meu marido e um outro casal de quem nos tornamos amigos compartilhamos um doce de chocolate para nós quatro. Era a nossa única refeição do dia. Tínhamos que retirar água de uma piscina cheia de cloro para que não morrêssemos de sede. Pessoas que estavam em um quintal vizinho coletavam uma água amarelada do esgoto. 

Tivemos que apagar dois incêndios em nossos abrigos, causados pelos bombardeios. Um dia, decidimos que preferiríamos morrer tentando fugir da cidade do que agonizar de fome e de sede. Naquele dia, eu, Stanislav, Anthony e outra família com uma menina de 5 anos caminhamos por 12 quilômetros. Andamos uns 6km por uma rua aberta, perto da fábrica Azovstal. Eles despejavam bombas de aviões, a uma distância de 1 a 2km de nós. Também atacaram outra fábrica, chamada Illich, a 4km, e usaram artilharia pesada contra a região central da cidade. 

Caminhamos pelo centro de Mariupol, à beira do mar. Em um momento, uma bomba de ar caiu em um prédio próximo de onde passávamos, ferindo nossa amiga, a mãe da garotinha. Achávamos que ela não sobreviveria, mas conseguimos encontrar um homem que a levou, em seu carro, para  fora da cidade. Naquele dia, não tivemos mais forças para seguir, e passamos a noite no porão de um hotel. No dia seguinte, voluntários nos tiraram de Mariupol. Hoje, estamos em Lviv, a 1.200km a noroeste." (RC)

Advogada, 22 anos, natural de Mariupol, hoje refugiada em Lviv. Na foto, em um porão de Mariupol com o marido, Stanislav, e o filho, Anthony, de 4 anos

 

Duas perguntas para...

Inna Sovsun, parlamentar ucraniana e vice-presidente da Faculdade de Economia de Kiev

Como a senhora vê o fato de os defensores de Mariupol terem ignorado o ultimato da Rússia?

Acho que as tropas russas emitiram esse ultimato por perceberem que os combates na área industrial de Mariupol com nossos defensores pode continuar por meses, e elas precisam mostrar alguma vitória agora. Não sabemos o que farão depois que todos os ultimatos terminarem. Um dos representantes da Milícia Popular da República Popular de Donetsk (leste), Eduard Basurin, publicamente declarou que os russos planejam usar armas químicas para superar a resistência em Mariupol. Ante a atenção da opinião pública a isso, os planos provavelmente foram adiados. Hoje à noite (ontem), recebemos a informação sobre a possibilidade do uso de bombas poderosas (FAB 1000 e FAB 3000) contra a siderúrgica Azovstal, por parte das tropas russas. É importante frisar que cerca de mil civis, incluindo crianças, estão escondidos em abrigos no território da siderúrgica. 

Qual seria a saída para impedir a tomada de Mariupol?

Precisamos de armas letais e de mísseis de longo alcance para desbloquear a cidade. Essas são as coisas mais importantes agora. Pedimos à comunidade internacional que nos ajude a deter esse genocídio do povo ucraniano pelas tropas russas.